O estranho espermatozóide do Dom Fafe
O dom-fafe (
Pyrrhula pyrrhula) é uma colorida ave que ocorre em Portugal todo o ano, sobretudo na região Norte. Vive em zonas bem florestadas, onde se alimenta sobretudo de sementes, bagas e rebentos. É parente próximo do priôlo (
Pyrrhula murina), uma espécie endémica dos Açores para a qual vários esforços de conservação têm sido direccionados nos últimos anos. Como em muitas aves, incluindo muitos outros passeriformes (o grupo mais abundante e diverso), apresenta dimorfismo sexual: os machos são bastante coloridos, com uma plumagem cinzenta-avermelhada, e as fêmeas mais discretas com a sua plumagem castanha. No entanto, pelo menos num aspecto o dom-fafe parece bastante diferente dos outros pássaros: na forma dos espermatozóides.
Fêmea (esquerda) e macho de dom-fafe (Pyrrhula pyrrhula) - Fonte: Geli
O espermatozóide normal de um passeriforme é bastante diferente do humano. Embora o padrão geral, constituído por cabeça, peça intermédia e cauda, seja semelhante, surgem algumas diferenças, nomeadamente na cabeça, que não é oval, mas sim em forma de saca-rolhas, e na peça intermédia, constituída apenas por uma mitocôndria enrolada (as mitocôndrias são os organelos responsáveis pela maioria da produção energética das células nos animais e muitos outros seres vivos). Mas os espermatozóides do dom-fafe são diferentes: cabeça redonda, peça intermédia pequena com várias mitocôndrias e uma cauda curta! Tão diferentes são que se esta fosse a única característica a avaliar na classificação destas espécies, o dom-fafe nem seria considerado um passeriforme, segundo a equipa britânica de Timothy Birkhead, que fez esta descoberta em 2006. Do nosso ponto de vista humano, bizarros seriam os espermatozóides enrolados dos outros pássaros, mas temos que ver isto no contexto evolutivo apropriado: no dos passeriformes, o dom-fafo é o estranho. Para além da estranha morfologia, acontece ainda que, ao contrário dos outros pássaros, os espermatozóides do dom-fafe possuem formas bastante variadas entre si (embora exista uma forma dita “normal”, que é a que consideramos aqui). Mas o que fez com que os espermatozóides do dom-fafe adquirissem esta estranha morfologia e grande variabilidade? Infelizmente não há dados sobre as outras espécies do género
Pyrrhula, embora se saiba que o seu parente mais próximo, o pintarrôxo-de-bico-grosso (
Pinicola enucleator), tenha uma morfologia espermática de pássaro normal. Noutras espécies de vertebrados, como gansos, leões ou chitas, sabe-se que um aumento de variabilidade morfológica no esperma está associado a eventos de consanguinidade e
bottleneck (evento que cause uma grande redução no número de indivíduos numa população). Quando ocorre um
bottleneck, as características dos sobreviventes podem ser diferentes das da população original, e por isso um evento destes pode traduzir-se em mudanças evolutivas. Isto pode explicar o nosso caso do dom-fafe, mas como demonstramos que um
bottleneck é a causa?
Espermatozóides de alguns fringilídeos (de cima para baixo): dom-fafe (Pyrrhula pyrrhula), cruza-bico (Loxia curvirostra), verdilhão (Chloris chloris) e tentilhão (Fringilla coelebs) - Fonte: Durrant et al 2010
Foi isto que a equipa de Kate Durrant, da Universidade de Sheffield no Reino Unido, tentou descobrir. Para isso pegaram em quatro espécies do grupo dos fringilídeos: o próprio dom-fafe, o cruza-bico (
Loxia curvirostra), verdilhão (
Chloris chloris) e o tentilhão (
Fringilla coelebs). Para cada uma delas foi analisada a variabilidade através de marcadores genéticos chamados microssatélites. Um microssatélite é uma sequência de DNA repetitiva, muito pequena, polimórfica (pode ter bastantes variações) e que tem um elevado ritmo de evolução. Os microssatélites são por isso bons indicadores de alterações recentes na diversidade genética de uma espécie, como um
bottleneck que pudesse afectar a variabilidade genética dos dom-fafes. A análise de 22 microssatélites revelou que nenhuma das quatro espécies era particularmente pouco diversa comparada com as outras, não se encontrando evidências da ocorrência de um evento de
bottleneck para nenhuma delas, incluindo o dom-fafe. Podia-se explicar a ausência de vestígios de um evento destes por ele ter decorrido há já demasiado tempo – os microssatélites tendem a detectar alterações mais recentes; no entanto, alterações como as que se verificam na morfologia do esperma, sendo causadas por aumento de consanguinidade devido a um
bottleneck, deixariam alguma marca genética. Então como interpreta a equipa de Durrant a estranha morfologia do espermatozóide do dom-fafe? O reduzido tamanho dos testículos do dom-fafe quando comparado com outros fringilídeos sugere uma maior tendência para a monogamia – isto é o que acontece por exemplo com os gorilas e as pessoas, e ao contrário dos chimpanzés, polígamos e com grandes testículos. Embora isto fique por testar, podemos imaginar o seguinte cenário evolutivo: ao longo da evolução do dom-fafe, os casais foram-se tornando cada vez mais monogâmicos. Ao acontecer isto, a fêmea tem menos hipóteses de acasalar com vários machos, logo a competição entre estes dá-se antes do acasalamento (quer seja por lutas ou por exibições), e quando o macho acasala com a fêmea já não precisa de ter espermatozóides capazes de competir com os de outro indivíduo, permitindo que estes adquiram uma forma diferente, e permitindo que possam formar-se espermatozóides com morfologia não-ideal.
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