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- Mai 11, 2007
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Nasceu em Moura, há 74 anos, mas foi em Lisboa que conheceu os jornais, a noite e as mulheres. Depois de lançar "Crónica dos Bons Malandros", apaixonou-se pela ficção. "Dama de Espadas", o seu novo livro, acaba de ser editado. E continua a escrever à mão.
A entrevista foi feita à mesa do seu café habitual: o Califa, em Benfica, ao pé da casa do escritor. Durante duas horas, falou-nos da carreira e vida boémia Pedro Azevedo .
É o seu oitavo livro. Mas Mário Zambujal, conhecido pela carreira no jornalismo, diz que nunca quis ser escritor. Não gosta de computadores nem telemóveis e só escreve à mão. Em entrevista ao i, recorda a chegada a Lisboa e as noitadas nos jornais que acabavam sempre no bas fond da cidade.
Acaba de editar "Dama de Espadas". Qual foi o ponto de partida deste livro?
Decidi escrever um romance sem ter um tema. Esta ideia partiu de uma verificação óbvia que está explicada no primeiro parágrafo: "Sete anos de diferença de idade podem ser um abismo ou quase nada." Há uma altura da vida em que a idade faz diferença. Esta é a história de uma adolescente de 13 anos, que vai tornar-se mulher. Os meus livros têm sempre a ver com pessoas, sentimentos, paixões, tudo aquilo que faz parte da condição humana.
É uma história de pura ficção?
Sou uma pessoa contemplativa e a minha escrita é muito influenciada pelo meu passado de jornalista. Por isso esta é uma história que não aconteceu, mas podia ter acontecido. Há uma certa agilidade na escrita e vontade de avançar na narrativa, também fruto do meu passado de prazos e horários apertados de fecho. Esse ritmo acelerado reflecte-se na vontade de encaminhar o leitor, de o levar a algum lado. Não é uma escrita introspectiva.
A ideia nasceu naturalmente?
Há uma coisa prévia que é o trabalho cerebral. Numa insónia podemos ter um trabalho fantástico. Ainda esta noite tive uma, e como preciso de entregar um conto de natal, acho que o fiz mentalmente. Só falta passar para o papel. Tenho muitas ideias durante a noite, enquanto não consigo dormir. Talvez tenha a ver com o facto de ter sido noctívago durante muitos anos. Fazia jornais até às quatro e cinco da manhã, só depois é que ia jantar. O problema é que a essa hora só há whisky e casas de meninas.
Como fazia então?
Acabava por cear nessas casas. No dia em que Carlos Lopes ganhou a medalha de prata nos Jogos Olímpicos, o director da revista "Flama" virou-se para mim e disse: ''Preciso de um texto teu, um daqueles malucos, mas preciso disso para amanhã de manhã.'' E lá fui eu ali para cave do Mundial, na António Augusto Aguiar, cheio de fome. Cheguei lá, encontrei-o com outros amigos comuns e disse-lhe: ''Amanhã de manhã, tocas à campainha da porteira e pedes a chave do correio. Deixo-te lá a crónica, mas não me acordes.'' Comecei a escrever em guardanapos de papel uma coisa chamada "Esta Noite Choveu Prata". Um artigo feito entre as marotas da Cave, que passaram a noite a dizer "então querido, o que estás fazer?" Dois anos depois o texto, escrito num ambiente de pecado, estava nos livros do oitavo ano de escolaridade. Só faltava cheirar a whisky.
Agora gosta mais de se refugiar em Alcoutim, onde tem uma casa de campo. Este livro foi escrito lá?
Não, este foi escrito em Benfica. Como sou presidente do Clube de Jornalistas, não consigo ir para lá tantas vezes. O meu retiro é uma antiga cavalariça, com capacidade para oito ou dez cavalos. Quando deixámos de ter os animais, mandei reconstruir aquilo como uma casa. A secretária onde escrevo está presa a uma janela e a linha do horizonte é metade Portugal e metade de Espanha, num ambiente muito serrano e campestre. O problema é que não aguento ali mais do que 15 dias.
Porquê?
Porque sou um tipo um bocado instável. Gosto de me movimentar, raramente me fixo. Mudar de ambiente é quase uma necessidade. Isso aconteceu nos vários jornais onde trabalhei, apesar de nunca ter mudado por causa de algum conflito - os meus desentendimentos são escassos, normalmente acabam com "ficas na tua, eu fico na minha". Nunca me chateio mais do que isto. Mudar com frequência torna a vida mais intensa, rodeada de mais pessoas.
Nasceu no Alentejo. Como veio parar a Lisboa?
Nasci em Moura, vivi na Amareleja, em Beja e no Algarve, onde comecei por escrever uma crónica num jornal local. Também jogava futebol, mas era uma nulidade com o pé esquerdo. O treinador obrigava-me a jogar com uma sapatilha no pé direito e uma bota no outro, para ver se eu chutava com o esquerdo. Quando o correspondente d''"A Bola" no Algarve adoeceu, eu fui substituí-lo. Os editores começaram a pedir-me mais coisas, até que, pela primeira vez na sua história, o jornal chamou um miserável correspondente da província para trabalhar em Lisboa, na redacção.
Aceitou logo?
Tive medo de ter medo. Vir morar para um quarto alugado no bairro das Colónias depois de viver numa casa com 14 divisões era assustador. A senhoria não era má pessoa, mas eu sentia-me intruso. Os dois primeiros meses foram um desastre. O Carlos Pinhão levava-me para casa dele quase como se me tivesse adoptado. Mal sabia onde era a Rua do Ouro.
Nunca tinha saído do Algarve?
Depois de adulto, sim. Vinha a Lisboa de vez em quando. Tinha cá uma avó, que visitava de longe a longe. A minha família era um bocado aciganada, mas sempre tive uma grande ligação familiar. Os meus pais eram boa gente. O meu pai era mais austero. Uma vez fui suspenso da escola e ele não me deixou sair do quarto durante três dias.
O que fez para ser suspenso?
Disparates. A escola ficava perto do tribunal para onde eu e os meus amigos fomos. Enquanto decorria o julgamento, nós dizíamos "o homem não fez nada". De repente, tínhamos a polícia à nossa volta. Fomos todos para a esquadra.
Ou seja, era um bom malandro...
Muita gente me diz isso. Fiquei a ser, apesar de não me considerar malandro.
Falando em malandro, foi esse o livro que o lançou na ficção, em 1980 ("Crónica dos Bons Malandros"). Por outro lado diz que não se leva muito a sério como escritor. É verdade?
Eu odiava a palavra escritor - apesar de já ter livros suficientes - porque representa uma actividade permanente. Prefiro dizer autor. Na verdade, eu não queria escrever a "Crónica dos Bons Malandros", mas os meus amigos passavam a vida a insistir. Gostavam das minhas crónicas mais ou menos humoradas. Nos últimos três anos escrevi três livros, mas sou muito indisciplinado na escrita. Tenho uma grande admiração por aqueles escritores que trabalham oito horas por dia, quase como se tivessem uma profissão burocrática. Eu sou capaz de trabalhar 16 horas em apenas um dia, mas também posso estar uma semana sem escrever uma linha. Faz parte da minha personalidade, não me violento muito no sentido de mudar, acho que não vale a pena.
Mesmo assim, deixou os jornais, que eram a sua praia, para ser jornalista de televisão. Porquê?
Na altura estava no "Sete". Aceitei o convite às quatro da manhã numa casa chamada Hipopótamo, sentado à mesa com o Cordeiro do Vale, que era chefe do departamento desportivo da RTP. Ele tinha dois gurus que o estimavam muito, o Noronha Feio, que foi director-geral do Desporto, e o José Esteves, que escrevia na "A Bola". Quando ele lhes perguntou se sabiam de alguém com o perfil para o lugar [apresentador de um programa de desporto], ambos me recomendaram. ''Eu falo alentejano com sotaque algarvio'', dizia eu.
Foi contrariado?
No dia em que fiz 39 anos, 11 meses e nove dias estava no jornal, prestes a entrar nos ''entas'', resolvi por isso fazer tudo o que não tinha feito. Inclusive televisão e escrever livros. A televisão intimidava-me, não era o meu universo, nunca gostei muito dos holofotes, das câmaras, sentia-me um bocado desajustado. A pior coisa que há é um tipo fazer as coisas sem ter a convicção de que as pode fazer bem. E eu, no principio, não tinha essa convicção.
Por isso é que costuma dizer que não tem uma boa relação com as máquinas?
Tento nunca dizer a expressão "no meu tempo". Este tempo também é o meu, mas sinto que as coisas vão ficando cada vez mais desumanizadas. Ainda escrevo os meus livros à mão. Dantes, nos intervalos do jornal, íamos comer uma sandes à dona Ermelinda. Agora é uma máquina que se está nas tintas se queremos manteiga ou alface. Mete-se lá a moeda e ela descarrega com ar de "toma lá isto e cala-te".
Por oposição, sempre teve boas relações com as pessoas, em particular com as mulheres. Teve muitos amores ?
Era namoradeiro e tive pessoas muito interessantes. Aos meus 15 anos, ainda se vivia um tempo de profundo afastamento entre rapazes e raparigas. Mas essa dificuldade, de não poder tocar ou abordar, era superada nos bailes. Quando o conjunto começava a tocar, virava-me para aquela rapariga que eu conhecia mas com quem nunca falava e dizia-lhe: "A menina não quer dançar, pois não?" Nunca falhou. Bailes e bola sempre foi o meu mundo. Mais tarde, já em Lisboa, era capaz de sair do jornal às três da manhã e ir a Santarém beber um copo com uma senhora. No "Diário de Notícias" os estagiários ficavam à minha espera só para os levar para as boîtes. Se tivesse morrido nessa altura, o meu funeral ia estar cheio de porteiros, conhecia toda a gente. Lembro-me que, na RTP, a pessoa que me tirava a maquilhagem virava-se para mim com um papel cheio de números de telefone e dizia: "Vá, tem aqui alguns contactos. Ligue a estas senhoras."
Ligava?
É preciso respeitar as solidões, mas telefonava sempre. Uma vez apanhei um susto do caraças, apareceu-me provavelmente a mulher mais feia da Europa, em babydoll e cinto de ligas. Eram quase sempre mulheres solitárias que me conheciam da televisão. Fiquei tão envergonhado que me apeteceu fugir, mas tinha medo de magoar a auto-estima e disse-lhe "Vim porque a senhora foi muito querida, mesmo só para beber um copo e ir embora." Foi ridículo.
Quantos cigarros fuma por dia?
Muitos mais do que devia. Costumo dizer que estive treze anos sem fumar. Desde que nasci até aos 13 [risos].
Era muito amigo de raul Solnado...
Ainda hoje, o nosso grupo de amigos faz um jantar todos os meses em sua homenagem. Somos oito, mas na mesa há sempre nove cadeiras. Falámos sempre sobre ele, e às vezes virámo-nos para ele e dizemos "está calado, Raúl".
ionline
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A entrevista foi feita à mesa do seu café habitual: o Califa, em Benfica, ao pé da casa do escritor. Durante duas horas, falou-nos da carreira e vida boémia Pedro Azevedo .
É o seu oitavo livro. Mas Mário Zambujal, conhecido pela carreira no jornalismo, diz que nunca quis ser escritor. Não gosta de computadores nem telemóveis e só escreve à mão. Em entrevista ao i, recorda a chegada a Lisboa e as noitadas nos jornais que acabavam sempre no bas fond da cidade.
Acaba de editar "Dama de Espadas". Qual foi o ponto de partida deste livro?
Decidi escrever um romance sem ter um tema. Esta ideia partiu de uma verificação óbvia que está explicada no primeiro parágrafo: "Sete anos de diferença de idade podem ser um abismo ou quase nada." Há uma altura da vida em que a idade faz diferença. Esta é a história de uma adolescente de 13 anos, que vai tornar-se mulher. Os meus livros têm sempre a ver com pessoas, sentimentos, paixões, tudo aquilo que faz parte da condição humana.
É uma história de pura ficção?
Sou uma pessoa contemplativa e a minha escrita é muito influenciada pelo meu passado de jornalista. Por isso esta é uma história que não aconteceu, mas podia ter acontecido. Há uma certa agilidade na escrita e vontade de avançar na narrativa, também fruto do meu passado de prazos e horários apertados de fecho. Esse ritmo acelerado reflecte-se na vontade de encaminhar o leitor, de o levar a algum lado. Não é uma escrita introspectiva.
A ideia nasceu naturalmente?
Há uma coisa prévia que é o trabalho cerebral. Numa insónia podemos ter um trabalho fantástico. Ainda esta noite tive uma, e como preciso de entregar um conto de natal, acho que o fiz mentalmente. Só falta passar para o papel. Tenho muitas ideias durante a noite, enquanto não consigo dormir. Talvez tenha a ver com o facto de ter sido noctívago durante muitos anos. Fazia jornais até às quatro e cinco da manhã, só depois é que ia jantar. O problema é que a essa hora só há whisky e casas de meninas.
Como fazia então?
Acabava por cear nessas casas. No dia em que Carlos Lopes ganhou a medalha de prata nos Jogos Olímpicos, o director da revista "Flama" virou-se para mim e disse: ''Preciso de um texto teu, um daqueles malucos, mas preciso disso para amanhã de manhã.'' E lá fui eu ali para cave do Mundial, na António Augusto Aguiar, cheio de fome. Cheguei lá, encontrei-o com outros amigos comuns e disse-lhe: ''Amanhã de manhã, tocas à campainha da porteira e pedes a chave do correio. Deixo-te lá a crónica, mas não me acordes.'' Comecei a escrever em guardanapos de papel uma coisa chamada "Esta Noite Choveu Prata". Um artigo feito entre as marotas da Cave, que passaram a noite a dizer "então querido, o que estás fazer?" Dois anos depois o texto, escrito num ambiente de pecado, estava nos livros do oitavo ano de escolaridade. Só faltava cheirar a whisky.
Agora gosta mais de se refugiar em Alcoutim, onde tem uma casa de campo. Este livro foi escrito lá?
Não, este foi escrito em Benfica. Como sou presidente do Clube de Jornalistas, não consigo ir para lá tantas vezes. O meu retiro é uma antiga cavalariça, com capacidade para oito ou dez cavalos. Quando deixámos de ter os animais, mandei reconstruir aquilo como uma casa. A secretária onde escrevo está presa a uma janela e a linha do horizonte é metade Portugal e metade de Espanha, num ambiente muito serrano e campestre. O problema é que não aguento ali mais do que 15 dias.
Porquê?
Porque sou um tipo um bocado instável. Gosto de me movimentar, raramente me fixo. Mudar de ambiente é quase uma necessidade. Isso aconteceu nos vários jornais onde trabalhei, apesar de nunca ter mudado por causa de algum conflito - os meus desentendimentos são escassos, normalmente acabam com "ficas na tua, eu fico na minha". Nunca me chateio mais do que isto. Mudar com frequência torna a vida mais intensa, rodeada de mais pessoas.
Nasceu no Alentejo. Como veio parar a Lisboa?
Nasci em Moura, vivi na Amareleja, em Beja e no Algarve, onde comecei por escrever uma crónica num jornal local. Também jogava futebol, mas era uma nulidade com o pé esquerdo. O treinador obrigava-me a jogar com uma sapatilha no pé direito e uma bota no outro, para ver se eu chutava com o esquerdo. Quando o correspondente d''"A Bola" no Algarve adoeceu, eu fui substituí-lo. Os editores começaram a pedir-me mais coisas, até que, pela primeira vez na sua história, o jornal chamou um miserável correspondente da província para trabalhar em Lisboa, na redacção.
Aceitou logo?
Tive medo de ter medo. Vir morar para um quarto alugado no bairro das Colónias depois de viver numa casa com 14 divisões era assustador. A senhoria não era má pessoa, mas eu sentia-me intruso. Os dois primeiros meses foram um desastre. O Carlos Pinhão levava-me para casa dele quase como se me tivesse adoptado. Mal sabia onde era a Rua do Ouro.
Nunca tinha saído do Algarve?
Depois de adulto, sim. Vinha a Lisboa de vez em quando. Tinha cá uma avó, que visitava de longe a longe. A minha família era um bocado aciganada, mas sempre tive uma grande ligação familiar. Os meus pais eram boa gente. O meu pai era mais austero. Uma vez fui suspenso da escola e ele não me deixou sair do quarto durante três dias.
O que fez para ser suspenso?
Disparates. A escola ficava perto do tribunal para onde eu e os meus amigos fomos. Enquanto decorria o julgamento, nós dizíamos "o homem não fez nada". De repente, tínhamos a polícia à nossa volta. Fomos todos para a esquadra.
Ou seja, era um bom malandro...
Muita gente me diz isso. Fiquei a ser, apesar de não me considerar malandro.
Falando em malandro, foi esse o livro que o lançou na ficção, em 1980 ("Crónica dos Bons Malandros"). Por outro lado diz que não se leva muito a sério como escritor. É verdade?
Eu odiava a palavra escritor - apesar de já ter livros suficientes - porque representa uma actividade permanente. Prefiro dizer autor. Na verdade, eu não queria escrever a "Crónica dos Bons Malandros", mas os meus amigos passavam a vida a insistir. Gostavam das minhas crónicas mais ou menos humoradas. Nos últimos três anos escrevi três livros, mas sou muito indisciplinado na escrita. Tenho uma grande admiração por aqueles escritores que trabalham oito horas por dia, quase como se tivessem uma profissão burocrática. Eu sou capaz de trabalhar 16 horas em apenas um dia, mas também posso estar uma semana sem escrever uma linha. Faz parte da minha personalidade, não me violento muito no sentido de mudar, acho que não vale a pena.
Mesmo assim, deixou os jornais, que eram a sua praia, para ser jornalista de televisão. Porquê?
Na altura estava no "Sete". Aceitei o convite às quatro da manhã numa casa chamada Hipopótamo, sentado à mesa com o Cordeiro do Vale, que era chefe do departamento desportivo da RTP. Ele tinha dois gurus que o estimavam muito, o Noronha Feio, que foi director-geral do Desporto, e o José Esteves, que escrevia na "A Bola". Quando ele lhes perguntou se sabiam de alguém com o perfil para o lugar [apresentador de um programa de desporto], ambos me recomendaram. ''Eu falo alentejano com sotaque algarvio'', dizia eu.
Foi contrariado?
No dia em que fiz 39 anos, 11 meses e nove dias estava no jornal, prestes a entrar nos ''entas'', resolvi por isso fazer tudo o que não tinha feito. Inclusive televisão e escrever livros. A televisão intimidava-me, não era o meu universo, nunca gostei muito dos holofotes, das câmaras, sentia-me um bocado desajustado. A pior coisa que há é um tipo fazer as coisas sem ter a convicção de que as pode fazer bem. E eu, no principio, não tinha essa convicção.
Por isso é que costuma dizer que não tem uma boa relação com as máquinas?
Tento nunca dizer a expressão "no meu tempo". Este tempo também é o meu, mas sinto que as coisas vão ficando cada vez mais desumanizadas. Ainda escrevo os meus livros à mão. Dantes, nos intervalos do jornal, íamos comer uma sandes à dona Ermelinda. Agora é uma máquina que se está nas tintas se queremos manteiga ou alface. Mete-se lá a moeda e ela descarrega com ar de "toma lá isto e cala-te".
Por oposição, sempre teve boas relações com as pessoas, em particular com as mulheres. Teve muitos amores ?
Era namoradeiro e tive pessoas muito interessantes. Aos meus 15 anos, ainda se vivia um tempo de profundo afastamento entre rapazes e raparigas. Mas essa dificuldade, de não poder tocar ou abordar, era superada nos bailes. Quando o conjunto começava a tocar, virava-me para aquela rapariga que eu conhecia mas com quem nunca falava e dizia-lhe: "A menina não quer dançar, pois não?" Nunca falhou. Bailes e bola sempre foi o meu mundo. Mais tarde, já em Lisboa, era capaz de sair do jornal às três da manhã e ir a Santarém beber um copo com uma senhora. No "Diário de Notícias" os estagiários ficavam à minha espera só para os levar para as boîtes. Se tivesse morrido nessa altura, o meu funeral ia estar cheio de porteiros, conhecia toda a gente. Lembro-me que, na RTP, a pessoa que me tirava a maquilhagem virava-se para mim com um papel cheio de números de telefone e dizia: "Vá, tem aqui alguns contactos. Ligue a estas senhoras."
Ligava?
É preciso respeitar as solidões, mas telefonava sempre. Uma vez apanhei um susto do caraças, apareceu-me provavelmente a mulher mais feia da Europa, em babydoll e cinto de ligas. Eram quase sempre mulheres solitárias que me conheciam da televisão. Fiquei tão envergonhado que me apeteceu fugir, mas tinha medo de magoar a auto-estima e disse-lhe "Vim porque a senhora foi muito querida, mesmo só para beber um copo e ir embora." Foi ridículo.
Quantos cigarros fuma por dia?
Muitos mais do que devia. Costumo dizer que estive treze anos sem fumar. Desde que nasci até aos 13 [risos].
Era muito amigo de raul Solnado...
Ainda hoje, o nosso grupo de amigos faz um jantar todos os meses em sua homenagem. Somos oito, mas na mesa há sempre nove cadeiras. Falámos sempre sobre ele, e às vezes virámo-nos para ele e dizemos "está calado, Raúl".
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