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Faleceu o escritor Dinis Machado

xicca

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Dizia que houve um livro que lhe tomou conta da vida e que eram os afectos que o mantinham vivo. Dinis Machado, escritor que queria ser poeta e jogador de bola, morreu ontem aos 78 anos. O seu nome fica para sempre ligado a uma obra: 'O Que Diz Molero'

O reconhecimento podia salvá-lo da solidão

Fácil resumir o currículo. Não o homem que sorria com um sorriso que o fazia fechar os olhos e se escondia por detrás de uma gargalhada rouca, quase silenciosa. Difícil descrever este imenso escritor de uma obra demasiado curta para o seu talento, que viveu os últimos anos sentado numa velha poltrona numa casa demasiado pequena e atulhada dos muitos objectos de uma vida de 78 anos. Estranho entender como se silenciou ou o silenciaram a este homem que tinha como única vista a da estreita janela ao lado da poltrona que dava para uma rua de pouca história nas Avenidas Novas.

Era ali que passava os dias com a mulher, Dulce, que lhe adoçava a solidão. Sentimento de injustiça o de ouvir aquele "obrigado por se lembrar de mim" quando atendia o telefone e do outro lado alguém lhe pedia uma opinião, uma reacção. Dinis Machado, o homem que disse que um romance lhe tomou a vida, morreu ontem, vítima de cancro no pulmão, em Lisboa, a sua cidade, anos depois de ter confessado eram os afectos que o mantinham vivo. "Não quero viver o tempo superior à minha vontade de viver, que vai desaparecendo a pouco e pouco, embora permaneçam resíduos de vontade de viver; a própria respiração pode ser vontade de viver." (DNA, 2000)

Nasceu em Lisboa, em pleno Bairro Alto, a 21 de Março de 1930, filho de um árbitro de futebol a quem chamavam o Oliveira-Penalty, dono do restaurante Farta-Brutos, na Travessa da Espera -- "árbitro assim-assim, mas que se tornou depois um crítico muito severo dos árbitros", segundo palavras de Carlos Pinhão, nas páginas de A Bola - Dinis Machado foi jornalista desportivo no Record, no Norte Desportivo, no Diário Ilustrado, no Diário de Lisboa. Foi chefe de redacção da extinta revista Tintin. Organizou os primeiros festivais de cinema da Casa da Imprensa e escreveu policiais para ganhar a vida ou, como ele dizia, para pagar o leite da filha, Rita, então pequena, que teve com Marília, a primeira mulher. Para esses livros, escritos ao estilo do policial negro americano, escolheu o pseudónimo Dennis McShade. Ficaram anos esquecidos até que a Assírio & Alvim os começou agora a reeditar. Foram três: A Mão Direita do Diabo, Requiem para D. Quixote (1967) e Mulher e Arma com Guitarra Espanhola (1968), todos publicados na colecção Rififi.

Dinis Machado, o homem que fechava os olhos quando ria, continuava a rir quase por sobrevivência, olhando sempre o lado cómico de qualquer situação e para si com uma humildade desarmante. "Os ritos, que incluem o riso e a dor, podem não aparecer numa situação social, mas são a nossa condição humana. Quando as pessoas não riem, ficam muito tristes; quando riem, é acompanhado da tristeza que está a ser coberta pelo riso. Como não há total transparência, há uma questão de comportamento de ordem social. Vivemos a solidão e vivemos com os outros, que são o tal inferno de que falava o Sartre."

Tomemos estas palavras como auto-retrato. Junte-se a comicidade a uma tendência para a filosofia e um atento olhar para os outros e chega-se ao tal livro que lhe tomou conta da vida. O Que Diz Molero, que outro? Publicado pela Bertrand em 1977, no pós-25 de Abril, vendeu mais de cem mil exemplares e chegou rapidamente às 14 edições. Haveria de ser um título colado ao nome de Dinis Machado e festejado há um ano, quando passaram três décadas da sua publicação. Foi reeditado (tem actualmente 31 edições) adaptado ao teatro, ilustrado num volume feito em parceria com o ilustrador António Jorge Gonçalves. Foi há pouco mais de um ano. Foi há pouco mais de um ano que Machado disse que a vida era uma coisa muito estranha numa entrevista ao DN. Disse isso e alongou a última sílaba desta frase que rematou com o tal riso rouco, um riso que contagiava o rosto todo e sem nunca largar o cigarro mas com uma pausa para o lamento da ausência de amigos como José Cardoso Pires, alguém que, como ele, preferia discutir futebol e falar de mulheres a deter-se em alongadas tertúlias literárias.

Depois de O Que diz Molero, ainda publicou títulos que injustamente haveriam de ficar na sombra daquele: Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel García Marquez (1984); Reduto Quase Final (1989) e Gráfico de Vendas com Orquídea (1999). A obra de Dinis Machado não se mede em títulos, muito menos em reconhecimento. Confessou que gostava de o ter, para mais do que um livro: "Ajuda-nos na solidão, contraria a nossa solidão" (DN, Março de 2007)

O corpo do Dinis Machado está em câmara ardente na Igreja da Encarnação, Chiado, e o funeral será hoje, às 16.00, no Cemitério do Alto de S. João.




DN
 
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