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- Jun 7, 2009
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As pessoas privadas da visão que têm a oportunidade de ter um cão-guia garantem que dificilmente conseguiriam voltar à bengala. Em Portugal só há uma escola para formar cães-guias. Que está longe de conseguir responder às solicitações.
Em Portugal só existe uma escola de cães-guias, em Mortágua. A ideia surgiu em 1996 no seio da Escola Profissional Beira Aguieira. Em 2000, torna-se autónoma e com dois educadores inicia a preparação dos primeiros cães-guias formados no país. Já entregou 76, mas está sem capacidade de resposta para todas as solicitações. A lista de espera ascende aos sessenta pedidos, só do continente, e já começam a surgir «encomendas» das ilhas. Por outro lado, há quem comece a precisar de substituir o cão que atingiu a idade da reforma. Os actuais três educadores e um pré-educador desdobram-se e multiplicam esforços para conseguir educar, cada um, quatro cães por ano e formar a dupla invisual/cão-guia. Número manifestamente insuficiente e que a escola quer ver aumentado a médio prazo.
A nm foi conhecer a única escola do país que educa os animais que mais do que fiéis amigos do homem se tornam seus inseparáveis companheiros, transmitindo segurança, confiança e um olhar a quem não vê, mas tem muitos obstáculos a contornar. A educação destes cães tem um custo na ordem dos vinte mil euros. São entregues gratuitamente aos invisuais.
A Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual (ABAADV) integra a Escola de Cães-Guias para Cegos. Sediada em Mortágua, a escola tem actualmente uma maternidade e acolhe os cães bebés da raça labrador retriever oferecidos por criadores ou que vai buscar a um centro reprodutor em França. Uma equipa constituída por dois tratadores, um pré-educador, três educadores, um administrativo, a directora técnica e veterinária, um relações-públicas e um professor de mobilidade e orientação, trabalha diariamente na selecção, sociabilização e educação dos animais que levam dois anos a ser preparados até poderem ser entregues a um invisual.
Aprender o afecto
O pequeno labrador começa por ir, com cerca de dois meses, para casa de uma família de acolhimento. A escola luta com a falta de famílias voluntárias, pelo menos numa área geográfica que facilite o contacto com a escola, que se disponibilizem para receber por cerca de 10 a 12 meses um cão. Primeiro, porque há alguns requisitos a cumprir e, depois, porque separar-se de um animal por natureza sociável, inteligente e afectuoso não é fácil. O ideal é que as famílias residam entre a Figueira da Foz, Aveiro, Viseu, Coimbra e Mortágua.
Encontrada a família, o animal passa então a viver com as pessoas que lhe vão transmitir as primeiras regras sob a orientação do pré-educador da escola. O cão não pode passar muitas horas sozinho, tem de conhecer os limites dentro e fora de casa, mas ao mesmo tempo ser preparado para andar por todo o lado, sempre pela esquerda do acompanhante. Apenas não pode andar em escadas rolantes. Come e bebe duas vezes ao dia. A ração é fornecida pela escola. Na companhia desta família, o cão tem permissão para entrar em todo o lado, dado que a trela o identifica como sendo um cão-guia em formação.
Chegada a altura de começar a educação mais a sério, o animal regressa à escola e começa então a ser levado para Coimbra ou Viseu. Um dos educadores, Sabina Teixeira, Marta Salomé ou Vítor Costa, dá então início a um ano de preparação do animal que mais tarde virá a constituir a dupla invisual/cão guia. São raros, mas há casos de insucesso. Por um ou outro motivo, normalmente por questões que se prendem com displasia, o cão pode ser rejeitado para as funções, mas nestes casos são entregues para adopção.
Um ano de preparação
Um ano para os preparar a obedecer a cerca de 25 ordens, sentirem-se responsáveis, serem audazes e perspicazes para poderem contornar obstáculos, definir percursos e conduzir em segurança o invisual ao local solicitado. Uma educação dada por recompensa, pela positiva. O cão é sempre compensado com um agradecimento sonoro e por contacto, tornando-se assim, mais do que fiel, responsável e determinado.
Durante este período o cão continua a ir ao fim-de-semana para casa da família de acolhimento ou, no caso de esta habitar longe do local onde são educados, muda de família. Findo este ano, por norma o cão está preparado para ser entregue a um invisual que tem de ser activo e obedecer a um conjunto de requisitos para que a dupla funcione. Terá de ser o invisual a cuidar do animal, dar-lhe de comer, limpá-lo, levá-lo a brincar e proporcionar-lhe um ambiente saudável.
Fazem primeiro uma candidatura, individualmente ou através da ACAPO, são depois entrevistados e quando seleccionados ficam então em lista de espera para acolherem o cão. Chegado o momento, os invisuais passam uma semana na escola com o cão e depois mais uma semana no ambiente onde se movimentam, sempre acompanhados pelo educador.
Reforma aos dez anos
Os casos de rejeição acontecem, mas são pontuais e sem grande significado no contexto do trabalho que tem vindo a ser desenvolvido e no número de duplas actualmente existentes.
Por fim, depois de oito a dez anos de trabalho, o cão tem de ser reformado. O invisual tem prioridade para receber outro, pois deixa praticamente de ter condições de andar de novo com a bengala. Quanto ao cão, pode ficar com o antigo dono, voltar para a família de acolhimento ou ir para uma outra que os receba em final de carreira.
Custos elevados
João Pedro Fonseca, presidente da ABAADV, foi um dos responsáveis pela criação da escola no único país da União Europeia que em 1996 não tinha um local para educação de cães-guias. Perante a realidade que conhecia de um ou outro invisual que tentara, sem sucesso, devido à formação do animal em outra língua e em contextos sociais e culturais diferentes, trazer cães-guias de outros países e sabendo da autonomia que proporcionam a um invisual, em conjunto com a Escola Profissional Beira Aguieira, ACAPO (Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal), DREC (Direcção Regional de Educação do Centro), Câmara Municipal de Mortágua e algumas pessoas singulares, avançaram com uma candidatura a um programa europeu que proporcionou a ida para França dos dois primeiros educadores para obterem formação durante três anos e construir os dois edifícios da sede da escola.
Faltava tudo o resto. Com a determinação da autarquia de Mortágua, a associação conseguiu um apoio da Segurança Social que cobre 65 por cento do orçamento anual da escola. O resto advém das quotas dos cerca de seiscentos sócios que pagam, no mínimo, dez euros por ano, de donativos e de campanhas promocionais. O objectivo é conseguir fundos para ampliar as instalações para que seja possível criar mais cães e poder ter mais um educador.
João Pedro Fonseca fala ainda de custos que não se estão a considerar. Não só os dirigentes da Associação trabalham em regime de voluntariado, como o fazem as famílias de acolhimento nas diversas fases, como há um trabalho que, reconhece, deveria ser feito, mas para o qual não há verbas. «Deveríamos ter um psicólogo para acompanhar os invisuais e os familiares que recebem os cães. É um universo desconhecido, porque na maioria das vezes os cães rompem com outros afectos dado que os invisuais se tornam muito mais autónomos», refere João Pedro Fonseca, que considera indispensável haver esta ajuda técnica.
O uso de cães-guias remontará ao início da era cristã. Contudo, a primeira tentativa efectiva de treinar cães para conduzir invisuais terá surgido em 1780 no hospital parisiense Les Quinze-Vingts. Mas é durante a Primeira Guerra Mundial, quando milhares de soldados ficaram cegos devido a gases venenosos, que o alemão Gerhard Stalling teve a ideia de educar cães para ajudar os militares. Em Agosto de 1916 foi criada a primeira escola de cães-guia spara invisuais em Oldenburg, na Alemanha. Portugal abriu a primeira, e única, 84 anos depois.
Na família de acolhimento
Rui Resende e Alexandra Boto têm ambos 40 anos e são professores. Ele de Educação Física e ela de Biologia e Geologia. São casados e têm dois filhos: Manuel, 9 anos, e Henrique, 6. Moram numa vivenda em Aveiro. Adoram animais. Por casa há peixes, pássaros e um coelho. Em família viram uma reportagem na televisão sobre a escola de cães-guias e as dificuldades que enfrentava para conseguir famílias de acolhimento para o primeiro ano de vida dos animais. Resolveram entrar em contacto com a escola e tornaram-se assim a primeira família de acolhimento em Aveiro, já lá vai mais de um ano.
Receberam a Queen quando tinha apenas 2 meses. Rapidamente se tornou a rainha da casa. E se o que têm vindo a fazer é gratificante, nem sempre é fácil, pois há rotinas a cumprir. A cadela não pode ficar sozinha muitas horas, o que obriga Rui Resende a ir sempre almoçar a casa e o resto da família a gerir horários para que possam estar o máximo de tempo com ela.
A cumplicidade do animal com a família, em especial com as crianças, é tão grande que é difícil imaginar a separação. Mas em casa estão todos conscientes dessa realidade. Os pais viram no acolhimento da Queen a oportunidade de transmitir aos filhos os valores da solidariedade, da importância de ajudar terceiros e contribuir para que outros possam ter uma vida mais feliz com a boa vontade e pequenos gestos de quem pode oferecer, quanto mais não seja, afectos e um lar a um animal que um dia vai ajudar alguém a tornar-se mais confiante e autónomo.
Não para já, porque a família enfrenta algumas limitações com os horários, mas garantem que a experiência é para repetir e querem um dia conhecer o invisual que virá a fazer parceria com a Queen, que entretanto começou a ser educada por Sabina Teixeira.
O dia-a-dia da formação
Em 1996 Sabina Teixeira e Vítor Costa deixaram para trás carreiras na área da sua formação académica, ela engenheira agrónoma, ele relações-públicas, para rumarem a França onde ficaram três anos em formação. Tornaram-se os primeiros dois portugueses a serem reconhecidos pela Federação Internacional de Escolas de Cães-Guias como educadores. Há dez anos ligados à educação de cães-guias, já foram eles que deram formação prática a Marta Salomé, a terceira educadora da escola.
Treinam em média, cada um, quatro cães por ano. Os dias são repletos de rotinas que têm de se tornar indiferentes ao facto de estar sol, fazer frio ou estar a chover. Os cães têm de ser educados para todas as situações. A educação e não o treino, como fazem questão de salientar os educadores, dado que o cão treinado repete sempre as mesmas coisas e um educado adapta-se às situações, é normalmente dada em Viseu e em Coimbra, as cidades mais movimentadas perto de Mortágua. Quando é necessário também vão a Lisboa, sobretudo por causa do metro.
«Os cães são treinados para andarem nos locais mais adversos, mesmo que depois os invisuais residam ou trabalhem em lugares mais pequenos e com menos obstáculos dos que são característicos numa grande cidade», salienta Sabina Teixeira. Em Coimbra, a carrinha que transporta animais e educadores é estacionada no Estádio Universitário. No dia em que a nm acompanhou a formação, à chegada estavam Liliana Ferreira e a mãe, que iriam acolher ao fim-de-semana a Queen.
Juntamo-nos à Simba, o cão-guia que em breve conheceria o seu novo dono. Brincalhona e afável, desfrutou do espaço livre enquanto Sabina preparava o arnês. Assim que a educadora o coloca, a atitude muda. O animal torna-se indiferente às brincadeiras e chamadas de quem o rodeia e concentra-se na educadora. São dadas as primeiras indicações e lá começa a efectuar o percurso. Os primeiros obstáculos são uma prova de fogo. Contornar um parque de estacionamento improvisado em cima de passeios com piso irregular leva o animal a ter uma atitude determinada mas que transmite confiança. Reduz a velocidade, procura alternativas para que passem ambos em segurança. Chegados junto de uma passadeira, o cão pára. Não distingue sinais vermelhos de verdes, nem mesmo os sonoros. Aí tem de ser o invisual, neste caso ainda o educador, a tomar as rédeas. O cão só inicia a travessia quando lhe for dada a ordem.
Depois segue caminho consoante o que lhe vai sendo pedido. Com a cumplicidade de Pedro Cruz, proprietário da Ourivesaria Ágata, em plena Ferreira Borges, em Coimbra, também ele família de acolhimento de cães reformados, é pedido ao cão que entre no estabelecimento. Este coloca de imediato as patas dianteiras no balcão para orientar o cego. De seguida senta-se e aguarda por novas instruções.
É hora de seguir viagem e há a necessidade de ir ao multibanco. O cão, que vai sempre pelo centro, do lado esquerdo do educador, só altera o percurso quando lhe é pedido, procura uma máquina e conduz o invisual até lá, usando mais uma vez a elevação das patas para dar a indicação precisa do espaço. Segue-se uma paragem no Café Santa Cruz, onde empregados e clientes já colaboram com a educadora, mas é o cão que procura a mesa vaga e dá indicação da cadeira. Ruma-se depois ao Mercado Municipal. Aqui, ao contrário do que acontece em muitos países, o cão é educado para subir e descer escadas rolantes. Uma das tarefas mais difíceis para o animal. Recompensado com palavras e gestos de carinho, Simba procura o caminho de regresso, normalmente o mais curto das alternativas que conhece, apenas com a indicação de que vão voltar à carrinha. Desembaraça-se das pessoas que por vezes param de repente nos passeios para conversar, dos obstáculos naturais e dos criados pelo homem. Segue indiferente aos cães vadios ou outros que se cruzem pelo caminho, às pombas que teimam em não levantar voo quando passa, sendo que por vezes demonstra algum nervosismo, não fosse o labrador um cão de caça por excelência. Contudo, nada que o desvie da responsabilidade de guiar o utilizador, transmitindo-lhe segurança e confiança.
Os utilizadores
Os responsáveis pelo Clube Português de Utilizadores de Cães-Guias são peremptórios: «O cão-guia apresenta uma alternativa à tradicional bengala, proporcionando ao invisual uma maior confiança, mobilidade e independência relativamente a terceiros. Permite também um maior contacto do invisual com a comunidade e combate a solidão.»
José Adelino Guerra, 56 anos, ficou cego aos 22 num acidente com uma granada quando cumpria o serviço militar. Vive e trabalha em Coimbra. Em 34 anos de cegueira enfrentou um mundo de obstáculos que o fez percorrer muitas etapas. Desmistifica a ideia de que o cego tem naturalmente os outros sentidos mais apurados. Mesmo os que nascem invisuais. «O que somos é obrigados a exercitar mais os outros sentidos para nos defendermos e minimizar os efeitos da cegueira», explica José Guerra.
Depois do acidente foi para um centro de reabilitação para cegos onde conheceu a mulher, que também cegou aos 22 anos, na sequência de um tratamento. Cursou Direito, especializou-se em Ciências Documentais, casou, teve dois filhos e trabalha na Casa da Cultura em Coimbra como responsável pelas traduções para Braille e áudio de livros e outros documentos, bem como da sua manutenção e disponibilização a utilizadores. Em cada momento foi-se adaptando às realidades que tinha de enfrentar. Andava com uma bengala, fazia compras no comércio tradicional que transportava muitas vezes em mochilas, hoje encomenda por telefone ou online e são entregues em casa por um hipermercado, e nunca descurou o acompanhamento dos filhos. Em casa, a mulher é ainda mais autónoma do que ele, «faz tudo e mantém tudo impecável», refere José Adelino, que já se sentia cansado com a bengala. «Somos autónomos dentro dos limites, mas causa grande stress. Com o cão é um maior conforto, é mais rápido e seguro», salienta.
Há quatros anos foi-lhe entregue a Luca, depois de uma experiência mal sucedida com um cão-guia que se excedia na protecção ao seu dono atacando quem se aproximava. Hoje está com uma família de acolhimento e é dócil.
A Luca tornou o dia-a-dia de José Adelino mais fácil e descontraído. Com o cão vai para todo o lado em segurança. Costuma sair com ele e com a mulher que, não abdicando da bengala, se sente também mais tranquila nos passeios a três. Mesmo quando vão para lugares diferentes, Luca acaba por decorar os trajectos depois de os fazer duas vezes. Lá por casa circulam ainda um serra-da-estrela, um gato e um canário, nada que tire o sentido de responsabilidade a Luca que sempre que lhe é colocado o arnês sabe que entrou ao serviço.
José Moreira e Guiana Francesa formam outra dupla de invisual/cão-guia, que vive na Lousã. Aos 7 anos um objecto estranho encontrado na rua veio a revelar-se fatal para o irmão de José Moreira, que aos 10 anos perdeu a vida quando uma velha granada explodiu enquanto os irmãos tentavam descobrir o que era. José Moreira sobreviveu mas ficou cego. Ainda recuperou ligeiramente, mas aos 14 anos viria a cegar totalmente. Diz que nunca deixou de ser quem era. Continuou a andar de bicicleta, a brincar, a estudar, mas nunca se adaptou à bengala. Casou, é hoje, aos 38 anos, pai de um rapaz de 10 e de duas meninas gémeas, de 2 anos. A mulher não é invisual, mas tem a vida dela e José Moreira sabe fazer tudo menos estar parado. Tirou um curso de massagista em Lisboa e hoje trabalha na Associação para a Recuperação de Cidadãos Inadaptados da Lousã (Arcil). É ainda representante de duas marcas de rações que vende e entrega ao domicílio a partir de um armazém que tem em casa e onde espantosamente se orienta sem que nenhum dos sacos tenha informação em Braille. Para não falar de toda a actividade que desenvolve como voluntário ligado a um conjunto de associações, entre elas o Grupo Técnico da Provedoria Municipal dos Cidadãos com Incapacidade da Lousã.
Quando teve conhecimento, através da ACAPO, de que ia haver uma escola de cães-guias em Portugal inscreveu-se de imediato. Esteve quatro anos à espera, três da entrevista e um para receber o cão. «Com a bengala somos o centro das atenções, com o cão é ele. É mais fácil, mais natural. Ela é os meus olhos», salienta José Moreira.
Na companhia de Guiana vai hoje para o trabalho, circula pela vila, vai ao banco, às finanças e à escola buscar o filho. José Moreira diz que, apesar de ter muito boa orientação, tem hoje a vida muito mais facilitada e se tornou mais confiante e autónomo.
por Licínia Girão. Fotografia de Ana Ribeiro
in Diário de Noticias