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Andar à boleia do jazz da Lisboa dos anos 20

florindo

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À boleia de João Moreira dos Santos pelo jazz da Lisboa dos anos 20 aos 50. Com novidades a caminho, recordamos o último roteiro do investigador

«Modéstia à parte, sei mais do que o próprio Hot Clube sobre a sua História», diz o guia. Foi um escândalo quando uma fila de mulheres brancas pediu a Louis Douglas aulas de dança Num jornal, um médico de Chicago anunciava que o jazz causava varizes

Se há quem ainda trauteie o tema do genérico da Tieta do Agreste, há também quem não se tenha esquecido do Moonlight Serenade da Glenn Miller Orchestra a passar na novela da Globo dos anos 70 Escalada.

É o caso de João Moreira Santos, a quem a música ficara no ouvido tinha apenas 10 anos. Hoje com 39, João vê-a como um prenúncio de uma vida inteira à volta do jazz. Mesmo quando a adolescência o mergulhara no heavy metal, o ritmo sincopado teimou em persegui-lo: «Uma vez quando ouvíamos um solo do Tony Iommi [guitarrista dos Black Sabath] comentei com o meu irmão que aquilo tinha uma inspiração jazz». Foi um instante até deixar as aulas de baixo eléctrico e ir aprender contrabaixo no Hot Clube, o mais antigo clube de jazz português, em Lisboa, do qual veio a ser tesoureiro durante dois anos.

As recordações biográficas surgem com datas precisas - «guardei todos os bilhetes dos concertos que vi até hoje, lembro-me das coisas a partir deles» -, como a entrada na faculdade, que «coincidiu com a vinda de Miles Davis em 89». Nesse dia faltou às aulas, acampou à porta do hotel do artista e, quando a estrela norte-americana saiu «com os sapatos de pele de cobra a brilhar», roeu-se de medo e foi-se embora. «Nem um autógrafo lhe pedi!»

João não se tornou músico de jazz, mas sabe mais do que o próprio Hot Clube sobre a sua História. O curso de comunicação empresarial levou a melhor sobre a hipotética carreira musical, deu aulas e foi director de comunicação de várias empresas. Mas a pesquisa paralela sobre a História do jazz, horas a fio na Biblioteca Nacional e na Hemeroteca a par de entrevistas a vários testemunhos, ganhou proporções inesperadas: escreveu quatro livros (Duarte Mendonça - 30 anos de jazz em Portugal 1974-2004 [2005]; O jazz segundo Villas-Boas [2007]; Jazz na Terceira - 80 anos de História [2008]; Jazz em Cascais [2009]), é desde 2003 autor do blogue Jazz no País do Improviso (jnpdi.blogspot.com), tornou-se produtor de concertos, e guarda na manga o projecto de um Museu do Jazz em Cascais.

«Quando toda a gente dizia que a História do Jazz em Portugal começava nos anos 40, eu tinha recortes de imprensa que demonstravam que começava nos anos 20», conta. Foi por isso que em 2005 resolveu propor ao Centro Nacional da Cultura um passeio sobre a História do Jazz em Lisboa a partir das suas diferentes moradas na cidade. O passeio realizou-se apenas cinco vezes, frequência que não faz jus à adesão mas para a qual João tem uma justificação simples: «Não me interessa repetir coisas».

«Este é um passeio para se fazer calmamente, ao ritmo dos anos 20». João descansava antecipadamente as hostes, que se preparavam para o périplo das 9h30 às 19h do último 'Roteiro do jazz pela Lisboa dos anos 20 aos 50' (realizado a 4 de Setembro de 2010). Estávamos no hall de entrada do Teatro da Trindade, propositadamente marcado como ponto de encontro.

Terá sido aqui que «tudo começou», nas vésperas do Golpe de 28 de Maio, que pôs fim à Primeira República Portuguesa. O primeiro registo de um concerto de jazz em Lisboa que João encontrou nas mais de 100 mil páginas consultadas ao Diário de Lisboa, dizia respeito ao dia 15 de Maio de 1926, quando aqui havia tocado a Jazz Band Sul Americana Romeu Silva. «Mas a primeira banda genuinamente de jazz a cá vir foi a dos negros norte-americanos, vindos de St. Louis, Robinson Syncopaters, em Novembro do ano seguinte».

Já em 1928 o destaque vai para a Revista Negra, dirigida pelo coreógrafo Louis Douglas, que aqui trouxera o ícone Sidney Bechet. «Numa altura em que as mulheres nem acompanhadas pelo marido podiam ir ao café, foi um escândalo quando se fez uma fila delas aqui no Teatro para pedirem aulas de charlston a Louis Douglas», contou o guia, lembrando que «na época um negro era visto como um selvagem, ainda por cima no começo do Estado Novo».

Já na vizinha Livraria Barateira, na Rua Nova da Trindade, ficámos a saber que a cantora Josephine Baker ali trocara informações sobre as tropas alemãs com o exército inglês, em 1941. «Diz-se que trazia dados escritos a tinta invisível em pautas de música ou em rolinhos de papel guardados no sutiã e que os colocava entre os livros».

No n.º 6 da Rua João Pereira da Rosa, no Bairro Alto, onde terá morado António Ferro, o guia reflecte sobre a dualidade do antigo dirigente do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), criado por Salazar. «O gosto pelo jazz de António Ferro, que outrora fora editor da revista Orpheu e até entrevistara a Josephine Baker sob um pseudónimo, não era compatível com as canções nacionalistas e fascistas que acabou por favorecer na rádio».

A viagem prossegue na Rua da Alegria, onde uma fachada degradada nos remete para a antiga sede do Clube Universitário de Jazz (CUJ), mandada fechar nos anos 60 pela PIDE devido aos posters maoístas. Na mesma rua passamos pela antiga morada da loja Disco Studio, fundada nos anos 50 por Luís Villas-Boas, que «acabou a vender máquinas de lavar roupa para sustentar a venda dos discos de jazz».

Já na Praça da Alegria estacamos à frente da quarta morada (entre 1954 e 2009) do Hot Clube Portugal, fundado em 1948, «onde tocaram todos os craques do jazz». Se Villas-Boas, o fundador, tivesse escutado os conselhos do maestro Ivo Cruz, então director do Conservatório Nacional, hoje no lugar do Hot Clube teríamos um clube de folclore. «Villas-Boas teve de lutar contra preconceitos como o do médico de Chicago que num jornal dos anos 30 afirmava que o jazz causava varizes».

Foram centenas as curiosidades históricas que João debitou ao longo dos mais de 30 locais de passagem do roteiro. Do luxuoso Clube Maxim's, outrora no faustoso Palácio Foz, ao Clube Majestic/Monumental, actual Casa do Alentejo, ambos locais «onde o jazz fez pendant com o jogo e as mulheres»; passando pela Rádio Renascença, que, da Rua Capelo, pôs pela primeira vez uma jam session no ar, protagonizada pelo saxofonista George Johnson e um quarteto português liderado por Tony Amaral. E nem o almoço, hora livre, escapou a uma sugestão jazzística: o restaurante Valentino, na Rua Jardim do Regedor, foi em tempos o café Negresco, onde tocaram pioneiros do jazz português como Almeida Cruz, Carlos Menezes e o maestro Costa Pinto.

Este último foi, aliás, o convidado especial do passeio, fazendo acompanhar as informações do guia por algumas das suas recordações pessoais dos locais onde tocou enquanto fundador da primeira big band portuguesa, a Orquestra Jorge Costa Pinto.

Para selar a viagem, João deixou as notas históricas de lado. No Gloria Live Music Club, na Rua do Ferragial, Chiado, ouvimos antes as notas de jazz do Maria Anadon Trio. Mal de nós se depois do calcorreio não viesse o swing.

Sol
 
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