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O mundo inferior

nuno29

GF Ouro
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Abr 16, 2007
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Ao aprender a andar, a criança começa a descobrir o mundo. Antes disso, capta apenas formas vagas, difusas, alongadas ou flutuantes. Com os pés no chão, ela olha para todas as coisas que saem dos seus passos, dir-se-ia do seu desejo, e que se põem a viver quando já pode caminhar sozinha.

É certo que também me acontecia levantar os olhos para o céu ou para o tecto. Aqui e ali, via as próprias nuvens e até o céu. Pombas e andorinhas passavam num voo que parecia imóvel. Imaginava também aranhas a trepar muito alto para pregaram os fios às estrelas.

Mas todas as coisas do céu ou do tecto que só se alcançam com os olhos, permaneciam indeterminadas. Pelo contrário, para os meus pés, tudo existia.

Nunca nenhum recanto me pareceu mais misterioso do que aquele em que marcava os meus passos. Toda a marcha é uma descoberta, tudo se mexe aos nossos pés: as pedras que fazemos rolar como bichos que fogem e a erva que o vento empurra. Tudo vive e tudo pode morrer. Uma palhinha coberta de lama parece um insecto esmagado.

Não, o céu não apresenta tanto mistério. Havia-o um pouco mais no tecto, menos alto. Mas na terra, aos meus pés, andava-se à vontade. Cada objecto descoberto chamava outro ainda escondido.

Por volta dos meus cinco anos, conhecia apenas o piso da casa, a terra do jardim e o pavimento de uma única rua, porque a povoação onde vivíamos tinha poucas.

Certo dia, levaram-me a casa dos meus avós, que tinham um comércio de tecidos situado numa rua muito buliçosa na cidade vizinha.

A loja era larga e comprida, iluminada pelas duas montras da fachada e uma janela em ogiva situada ao fundo. Mas essa janela, que dava para um beco escuro, parecia ter sido colocada ali menos para dar luz do que para se ver para fora. Era como um olho alongado do meu avô, sempre sentado diante da escrivaninha, onde assentava as contas no livro grande.

À direita e à esquerda da loja, dois balcões, munidos de três filas de gavetões muito pesados e difíceis de manejar, pousavam sobre tijoleiras de pedra azul. A minha cabeça chegava ao gavetão mais alto, mas não era esse, que a minha avó tantas vezes consultava, que mais me atraía. Conhecia-o quase de cor, por tanto ter olhado para ele de cada vez que era aberto. Ficava à minha altura, isso era normal. Mas o terceiro, em baixo, quase rente ao chão… o que eu não teria dado para o abrir e saber o que continha! Devia ter raízes por baixo do balcão.

Nas paredes, os rolos de tecidos estavam empilhados em prateleiras de madeira. Quando um acabava ou era retirado para se desenrolar o tecido, o lugar que o ocupava parecia uma gaveta vazia.

Tal como as gavetas, também os rolos ganhavam mais importância aos meus olhos à medida que desciam. Os do cimo, que tocavam no tecto e só eram alcançados com uma escada, deixavam-me indiferente. Deviam ser de madeira, como as bolas falsas da Holanda pintadas de vermelho, nas montras dos merceeiros. A minha curiosidade parava nas últimas prateleiras, próximas do chão, onde os tecidos mergulhados numa semi-obscuridade se pareciam já com a terra. Eu semeava ali toda a espécie de sonhos, que germinavam.

Certo dia, o meu avô, que me tinha visto andar misteriosamente às voltas na loja, pensando que me aborrecia, disse-me:

— Frederico, queres apanhar os alfinetes? Há muitos caídos no chão. Procura bem. Não se vêem logo à primeira, mas estão lá, acredita. Dou-te um cêntimo por cada dúzia.

Aceitei com alegria e pus-me imediatamente à procura. Não precisava de me certificar que havia alfinetes no chão. Já me tinha apercebido. Mas era preciso aquela promessa de ganhar dinheiro para me aplicar a apanhá-los.

O meu jogo preferido era atrair, de forma estranha, os olhares de quem passava lá fora. Fazia passar um fio preto pelo buraco da porta onde à noite se metia uma pequena barra de ferro para segurar as portadas. Na ponta do fio estava presa uma moeda de cobre, que eu fazia tilintar sobre as pedras do passeio no momento em que alguém ia a passar. O transeunte parava, olhava para o chão e, ao ver a moeda, estendia a mão para a apanhar. Antes que lhe tocasse, eu puxava o fio com um esticão e, escondido atrás da porta, ria-me como um tolo da surpresa do ingénuo.

Este jogo perdeu todo o meu interesse a partir do momento em que o meu avô me propôs apanhar os alfinetes.

Comecei pela parte da loja que ficava entre os dois balcões e que estava calcetada com pedras azuis. Nesta superfície baça não era fácil distinguir os alfinetes, cujo brilho tinha desaparecido com o uso. Fiz uma dúzia em menos de uma hora mas, quando recebi em troca a moeda prometida, comecei a arquitectar a ideia de fortuna. Debruçado sobre as pedras, via já as moedas de cobre encherem uma caixa ou agrupadas por cilindros, embrulhadas em papel de jornal.

Foi precisa outra eternidade para juntar, entre o polegar e o indicador, a segunda dúzia. As tijoleiras estavam gastas, esbotenadas e, nalguns sítios, soltas. Era ali naqueles buracos e interstícios que os alfinetes se refugiavam.

Quando aquela parte da loja foi suficientemente explorada, corri avidamente para a parte de trás da loja, onde estava a secretária do meu avô, apertando as minhas duas moedas no bolso das calças. Aquele espaço era apenas iluminado pela janela que dava para o beco. Como é que o meu avô, que nunca usava óculos, podia escrever naquela semi-obscuridade? Ali já não havia tijoleira de pedra, mas um soalho preto, irregular, cheio de fendas, de buracos e de ratoeiras, segundo se dizia. Tive de me debruçar mais e de olhar mais de perto. Havia muito mais alfinetes naquele lugar, mas estavam muito escondidos, perdidos nas juntas do soalho, misturados com a poeira e com toda a espécie de lixo. Primeiro, era preciso descobri-los no meio dos parasitas, depois agarrá-los, fazendo-os saltar com a ajuda de um prego.

O mistério da obscuridade e a esperança de outra descoberta diferente da que me entusiasmara até ali, começaram, de repente, a apoderar-se de mim. Esqueci a fortuna de cobre que jazia nas fendas do soalho. Tinha acabado de juntar meia dúzia de alfinetes quando os tornei a espalhar.

Andava de joelhos debaixo da janela à procura de outro tesouro que podia ser apenas fruto de uma enorme curiosidade. Aquela janela estava comigo, é verdade. Ela juntava-se à minha sede de descoberta precisamente porque não era igual às outras, bem lavada e de uma claridade absoluta. Eu via apenas a claridade pálida espalhada pelo chão, não para me iluminar, mas, para conduzir pela sua duplicidade, a minha inquietação à surpresa de que estava à espera. Pouco me importavam as dimensões que tivesse, ou que fosse dupla, dando, ao mesmo tempo, para fora e para dentro. Eu não queria aprender, mas errar, isto é, ser empurrado, aos poucos, por mil desvios, para uma fulminante e terrível revelação. Só ergui os olhos para ela uma vez. Para constatar que o meu avô, debruçado no seu livro de contas, estava de costas viradas para ela.

Tinha prosseguido a marcha até ao rodapé, de gatas e, com as mãos a arranhar o chão, acabava de dar a volta à loja quando o meu olhar pousou nos quatro pés da secretária onde o meu avô escrevia.

Aqueles quatro pés de madeira, pretos, sobressaíam de uma forma estranha contra a luz pálida da janela, com ângulos precisos e de uma altura enorme, inflexível, projectando no chão, cada um deles, uma sombra inclinada de uma doçura e de uma nitidez extraordinárias. Dir-se-ia que eles reflectiam desde toda a eternidade. No meio daqueles quatro pés mergulhados nas suas meditações, conservando sempre as mesmas distâncias, estavam os do meu avô, que mexiam nervosamente e se deslocavam ao acaso e pareciam completamente tontos.

Algo se passou naquele instante. Vi os pés calçados de couro juntarem-se, com ruído, e levantarem-se com estalidos na ponta, como se tivessem de suportar um grande peso. Naquele instante, ouvi, por cima de mim, um choque seguido de uma espécie de rangido e imediatamente a seguir um jacto de líquido preto caiu no chão e começou a formar uma poça larga e brilhante. Os pés retiraram-se bruscamente no meio do estrondo de uma cadeira a recuar. De cócoras, não ousei mexer-me mas, ao levantar os olhos, dei com o meu avô a olhar para aquela mancha escura, que aumentava a cada gota de líquido que caía, não sei de onde.

— Ah, és tu, seu maroto! — exclamou ele ao ver-me. — Então eras tu que estavas a mexer aos meus pés! O que estás aí a fazer? Assustaste-me e virei o tinteiro por tua causa.

— É só o que sabe fazer, e a tinta é tão cara! — grita uma voz mais distante, a da minha avó.

Surgiram umas mãos armadas de um papel mata-borrão e puseram-se a chupar o líquido viscoso que cobria o chão. Assim que aquele trabalho acabou, vi aparecerem os pés do meu avô, que retomaram o movimento desajeitado.

Como podiam acusar-me de ter provocado aquela queda e ter ajudado a espalhar aquele líquido horroroso, eu que estava tão quieto e agachado, a olhar para aqueles pés de madeira tão misteriosos? Não me passara pela cabeça troçar daqueles pés, embora tão ridículos. O ar grave dos quatro pés imóveis impressionou-me mais. Continuavam concentrados nos seus pensamentos como se nada tivesse acontecido, e as suas sombras paralelas em nada se desviaram.
 
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