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Dela resulta que o processo, uma vez iniciado, deverá desenvolver-se em termos funcionalmente orientados para o asseguramento de uma tutela jurisdicional efetiva a ambas as partes intervenientes no litígio, proporcionando-lhes meios eficientes de salvaguarda das suas posições e colocando-as, também desse ponto de vista, numa situação de paridade na dialética que protagonizam na defesa dos respetivos interesses (cf. Acórdão n.[SUP]o[/SUP] 632/99).
Assim compreendido, o princípio do processo equitativo, apesar de não excluir a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação dos diversos regimes adjetivos que integram o ordenamento infraconstitucional, vincula a estruturação de cada procedimento à observância de um conjunto de regras e princípios, em especial do princípio do contraditório e do princípio da igualdade de armas.
O princípio do contraditório ( do qual decorre, em primeira linha, a chamada regra da proibição da indefesa( postula que a ambas as partes seja assegurada possibilidade de participar no desenrolar do processo e de influir na dirimição do litígio, em termos de cada uma delas «poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras» (cf. Acórdão n[SUP]o[/SUP] 444/91, em DR II, de 2 de abril de 1992, p. 3137).
Já o princípio de igualdade de armas exprime uma ideia de paridade ou de equilíbrio entre as partes quanto aos meios processuais mobilizáveis para a defesa das respetivas posições, exigindo que a ambas sejam concedidas «"idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes é devida"» (cf. Acórdão n.[SUP]o[/SUP] 223/95). Por isso, apesar de não implicar uma identidade formal absoluta de meios, o princípio da igualdade processual reclama que cada uma das partes em litígio «possa expor as suas razões perante o tribunal em condições que a não desfavoreçam em confronto com a parte contrária» (cf. Acórdão n.[SUP]o[/SUP] 223/95 e, no mesmo sentido, Rui Medeiros, in Jorge Miranda/ Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 442).
Uma vez que, por força dos princípios do contraditório e da igualdade de armas, o legislador se encontra vinculado a modelar cada processo em que se dirima um conflito em termos de ambos os litigantes poderem dispor, em condições de tendencial paridade, da faculdade de exercer uma influência efetiva no modo de conformação da lide, percebe-se que o domínio da fixação do regime das citações e das notificações surja, justamente, como um daqueles em que a liberdade de conformação que em princípio lhe assiste se encontra particularmente condicionada. Condicionada no sentido em que, apesar de a Constituição não impor a adoção de um qualquer específico formalismo para a comunicação dos atos processuais, daqueles princípios decorre que o formalismo escolhido, qualquer que seja, deverá «facultar às partes o conhecimento da existência ou do estado do processo, colocando-as em condições de exercitarem o seu direito de defesa, face às pretensões da contraparte, ou de exercerem os demais direitos de intervenção processual» (cf. Lopes do Rego, "Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil" Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2004, p. 837).
9. Conforme visto já, a norma impugnada integra o regime processual a que se encontra sujeita a fase de verificação e graduação de créditos no âmbito do processo de insolvência, dela resultando que, também no caso de a lista dos créditos reconhecidos ser entregue pelo administrador da insolvência depois de esgotado o prazo legal fixado para esse efeito, o insolvente, ao contrário do que sucede com os credores cujos créditos não hajam obtido reconhecimento ou que tenham sido reconhecidos em termos diversos dos reclamados, não carece de ser notificado dessa entrega.
Trata-se, portanto, de uma hipótese que supõe a confrontação com os princípios do contraditório e da igualdade de armas, não da suficiência do mecanismo escolhido pelo legislador para levar ao conhecimento de certo interveniente processual - no caso, o insolvente - a prática de determinado ato - a apresentação da lista dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência -, mas da ausência pura e simples de qualquer forma de transmissão. De acordo ainda com a solução impugnada, o ato cuja notificação é dispensada, apesar de extemporaneamente praticado, é, no entanto, aquele que desencadeia o início do prazo de 10 dias de que, na qualidade de interessado, o insolvente dispõe para exercer no processo a faculdade de impugnação dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência, invocando a indevida inclusão de todos ou de certos deles e/ou a incorreção do respetivo montante ou da qualificação que hajam obtido.
Ora, toda a fase de verificação e graduação de créditos é informada - convêm recordá-lo uma vez mais - pela regra segundo a qual o prazo para a prática do ato que se segue é desencadeado a partir do mero esgotamento do prazo que a lei fixa para a prática do ato imediatamente anterior.
Nos casos em que a lista dos créditos reconhecidos é entregue pelo administrador da insolvência depois de esgotado o prazo que a lei para o efeito lhe fixa, tal regra - cujo objetivo é o de tornar o procedimento mais célere e expedito - deixa de poder funcionar: nesta hipótese, vimo-lo também, o termo inicial do prazo de que dispõe o interveniente seguinte na cadeia torna-se independente do termo final do prazo previsto para a prática do ato da responsabilidade do interveniente imediatamente anterior, passando a coincidir com o momento em que este último ato é efetivamente praticado, qualquer que seja o momento em que o tenha sido, por referência àquele em que o deveria ser.
Em hipóteses como esta, a notificação da lista entregue pelo administrador da insolvência surge como a única forma de, através do processo, assegurar o conhecimento pelo insolvente do dies a quo do prazo para impugnação dos créditos reconhecidos, colocando-o em condições de exercer o seu direito de defesa face às pretensões dos credores reclamantes que considere não deverem proceder. Se tal notificação for dispensada, o insolvente apenas conseguirá inteirar-se do termo inicial do prazo de 10 dias de que dispõe para contestar os créditos pelos quais entenda não dever responder, pelo menos em momento compatível com o aproveitamento de todo ele, se se deslocar diariamente à secretaria judicial para verificar se a lista já foi entregue, e se o fizer ao longo de tantos dias quantos aqueles em que persistir a delonga do administrador da insolvência, face ao que se dispõe no artigo 129.º, n.[SUP]o[/SUP] 1, do CIRE.
10. Tal ónus, já em si conflituante com os princípios do contraditório e da proibição da indefesa, torna-se mais problemático ainda em face do efeito cominatório quase pleno que a lei associa à falta de impugnação dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência: independentemente da maior ou menor latitude consentida pela interpretação do conceito, é seguro que será apenas nos casos de «erro manifesto» que, na falta de impugnação, o juiz deixará de proferir de imediato sentença de verificação e graduação de créditos, limitando-se aí a homologar a lista dos credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e a graduar os créditos reconhecidos em atenção ao que conste dessa lista (artigo 130.º, n.[SUP]o[/SUP] 3, do CIRE).
Daqui resulta que o desconhecimento do termo inicial do prazo para impugnação dos créditos reconhecidos não gera apenas a consequência de impedir o insolvente de contraditar a pretensão do credores reclamantes; por força do efeito cominatório atribuído à falta de impugnação, tal desconhecimento produzainda o efeito de tornar o património do insolvente automaticamente responsável pela totalidade dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência, nos exatos termos em que o tiverem sido, salvo caso de erro manifesto.
Ora, a gravidade do efeito cominatório e preclusivo que a lei impõe ao insolvente não impugnante não pode deixar de reforçar a necessidade de uma certeza prática no conhecimento ou cognoscibilidade do ato que desencadeia o início do prazo dentro do qual poderá ser contestada a existência dos créditos reconhecidos, a exatidão do seu montante e/ou a qualificação que receberam do administrador da insolvência (neste sentido, ainda que a propósito dos efeitos associados à revelia do réu em processo civil, cf. Lopes do Rego, loc. cit., p. 857), tornando, por isso, mais problemática ainda, à luz do princípio do contraditório, a dispensa de notificação - que é o mecanismo processual destinado a dar conhecimento a alguém de um facto (cf. artigo 219.º, n.[SUP]o[/SUP] 2, do Código de Processo Civil) - da entrega da lista dos créditos reconhecidos, sempre que a mesma tiver lugar depois de esgotado o prazo previsto para esse efeito.
Ao comprometer determinantemente o exercício pelo insolvente da faculdade de impugnação dos créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência, a dispensa de notificação consentida pela norma impugnada afeta, em suma, uma projeção nuclear do princípio da proibição da indefesa, que assenta na inadmissibilidade de prolação de qualquer decisão sem que ao sujeito processual pela mesma afetado seja previamente conferida a possibilidade de discutir e contestar a pretensão que nela obtém procedência e se intensifica perante o efeito cominatório e/ou preclusivo associado à inação processual.
Encontramo-nos, pois, numa zona especialmente sensível à intervenção do legislador ordinário, que obriga a uma ponderação particularmente exigente quando se trate de adotar mecanismos concretizadores das exigências de simplificação e celeridade do processo ( as únicas em que, conforme adiante melhor se verá, poderá à partida basear-se a dispensa de notificação ínsita na norma impugnada.
11. A tensão que, do ponto de vista do princípio do contraditório, se viu existir entre a norma sob fiscalização e o princípio do processo equitativo, consagrado no n.[SUP]o[/SUP] 4 do artigo 20.º da Constituição, agrava-se ao confrontarmos a solução impugnada com o princípio da igualdade de armas. E isto porque, se assim se passam as coisas pelo lado do insolvente, o mesmo não sucede já relativamente aos credores cujas pretensões hajam sido preteridas.
Com efeito, a lista dos créditos reconhecidos e não reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência é sempre notificada, conforme vimos, aos credores não reconhecidos, bem como àqueles cujos créditos tiverem sido reconhecidos em termos diversos dos reclamados, contando-se o prazo de 10 dias de que uns e outros dispõem para exercer a respetiva faculdade de impugnação a partir do terceiro dia útil posterior ao da expedição da carta remetida para aquele efeito.
Ora, sendo manifesto que o insolvente tem um interesse em contestar os créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência, no mínimo, idêntico ou equivalente ao interesse que os credores não reconhecidos, ou cujos créditos tiverem sido reconhecidos em termos mais desvantajosos, têm em contraditar a decisão que a tal conduziu, só excecionais razões poderão justificar a diferença que vimos existir entre os mecanismos processuais àquele e a estes facultados para a defesa das respetivas posições.
12. Por comprimir o direito ao processo equitativo, tanto na vertente do princípio do contraditório, como na dimensão relativa ao princípio da igualdade de armas, a norma impugnada encontra-se sujeita aos limites que o princípio da proibição do excesso, consagrado no n.[SUP]o[/SUP] 2 do artigo 18.º da Constituição, fixa às leis restritivas de direitos, liberdades e garantias.
Conforme salientado na decisão recorrida, o processo de insolvência é um processo de natureza urgente, que se estende a todos os seus incidentes, apensos e recursos (artigo 9.º, n.[SUP]o[/SUP] 1, do CIRE), opção que concretiza e traduz a preocupação em imprimir celeridade ao procedimento, tornando-o mais flexível e expedito, de modo a assegurar a respetiva eficácia. Sendo esse o único interesse em cuja prossecução poderá residir a dispensa de notificação ao insolvente da lista apresentada pelo administrador da insolvência nos casos em que esta é entregue depois de esgotado o prazo legal para o efeito fixado, o que importa começar por verificar, de acordo com a metódica assente no triplo teste desde há muito seguida na jurisprudência deste Tribunal (cf. Acórdão n.[SUP]o[/SUP] 634/93), é se aquela opção configura, relativamente ao fim visado, uma medida adequada; num segundo momento, impõe-se averiguar se a compressão do princípio do processo equitativo implicada na solução fiscalizada é exigida pela prossecução do fim visado ou, pelo contrário, o legislador poderia ter lançado mão de um outro mecanismo, igualmente eficaz mas menos desvantajoso para o direito atingido; por último, importará determinar se o resultado obtido através dessa limitação é proporcional à carga coativa que a medida comporta ou se esta se revela, pelo contrário, excessivamente restritiva da posição jusfundamental afetada.
Seguindo de perto a formulação adotada no Acórdão n.[SUP]o[/SUP] 941/17, pode dizer-se que existirá violação do princípio da proibição do excesso se a medida em análise for considerada, desde logo, inadequada à finalidade que prossegue, conclusão que se imporá perante a convicção clara de que a mesma é, em si mesma, inócua, indiferente ou até negativa, relativamente a esse fim.
Ora, é justamente o que sucede no caso em presença.
Tendo presente que, por força da própria lei, a lista entregue pelo administrador da insolvência tem sempreque ser notificada aos credores não reconhecidos, aos credores cujos créditos tiverem sido reconhecidos apesar de não reclamados e aos credores cujos créditos tiverem sido reconhecidos em termos diversos dos reclamados, é manifesto que o processo nunca se tornará, nem menos célere, nem menos expedito, se a mesma notificação for dirigida também ao próprio insolvente. Não se trata, assim, de introduzir na sequência de atos que integra o procedimento um qualquer dever de comunicação que não se encontre previsto já no regime que disciplina o processo de insolvência, mas tão-somente de incluir o próprio insolvente no universo daqueles que são destinatários obrigatórios dela.
Por não originar qualquer ganho, efetivo ou potencial, na celeridade do processo, a dispensa de notificação cuja constitucionalidade vem questionada revela-se, pois, em face do próprio regime constante do CIRE, uma medida irrelevante ou supérflua, e por isso inadequada, para a consecução daquele fim. Para além de dificultar de modo excessivo e intolerável a intervenção processual facultada ao insolvente, tal dispensa consubstancia, em suma, um meio imprestável ou impróprio do ponto de vista da finalidade que através dele é prosseguida, envolvendo, desde logo por essa razão, uma compressão dos princípios do contraditório e da igualdade de armas incompatível com o disposto no n.[SUP]o[/SUP] 4 do artigo 20.º da Constituição.
O recurso deverá, pois, ser julgado procedente.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a)Julgar inconstitucional, por violação do n.[SUP]o[/SUP] 4 do artigo 20.º da Constituição, em conjugação com o n.[SUP]o[/SUP] 2 do respetivo artigo 18.º, a norma extraída do n.[SUP]o[/SUP] 1 do artigo 130.º do CIRE, de acordo com a qual o insolvente não deve ser notificado da lista de credores reconhecidos, quando essa lista for apresentada para lá do decurso do prazo que resulta do que tiver sido fixado na sentença que declarou a insolvência;
e, em consequência,
b) Julgar procedente o recurso.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 10 de janeiro de 2018 - Joana Fernandes Costa - Gonçalo Almeida Ribeiro - Maria José Rangel de Mesquita - Lino Rodrigues Ribeiro - João Pedro Caupers