Texto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
[h=3]I - Relatório
[/h]1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, o Ministério Público veio interpor recurso do acórdão de 3 de maio de 2016, invocando o disposto no artigo 70.º, n.[SUP]o[/SUP] 1, alínea a), da Lei n.[SUP]o[/SUP] 28/82, de 15 de novembro, (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
Fundamentou tal recurso na circunstância de a decisão recorrida ter recusado, por inconstitucionalidade material assente na violação do artigo 20.º, n.[SUP]os[/SUP] 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa, "a aplicação do disposto no n[SUP]o[/SUP] 4 do art. 17º-G do CIRE, interpretado no sentido de que, requerida a insolvência do devedor pelo administrador judicial provisório, se deve aplicar, de imediato, o disposto no art.º 28, com as necessárias adaptações, isto é, que o requerimento do administrador judicial provisório pedindo a insolvência do devedor deve implicar o reconhecimento por este da sua situação de insolvência e a dispensa da sua audiência".
2. No âmbito de processo especial de revitalização instaurado por A., Lda., tendo sido frustrada a aprovação do plano de recuperação conducente à revitalização da empresa, o administrador judicial provisório emitiu parecer, nos termos do n.[SUP]o[/SUP] 4 do artigo 17.º-G do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), no sentido da decretação da respetiva insolvência.
Nesta sequência, foi proferida decisão que, aplicando o disposto nos artigos 2.º, n.[SUP]o[/SUP] 1, alínea a), 3.º, n.[SUP]o[/SUP] 1, e 28.º, por força do artigo 17.º, n.[SUP]o[/SUP] 4, todos do CIRE, declarou a insolvência, sem prévia audição da empresa a respeito do parecer do administrador judicial provisório.
Notificados da referida decisão, os credores B. e C. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, alegando, em suma, que a empresa devedora não se encontra em situação de insolvência, que o parecer do administrador judicial provisório invoca fundamentos que não encontram correspondência nos factos apurados nos autos e que não resulta do artigo 28.º e 17.º-G, n.[SUP]o[/SUP] 4, ambos do CIRE, que a declaração de insolvência tenha um cariz automático.
Decidindo, o Tribunal da Relação de Coimbra proferiu o acórdão de 3 de maio de 2016, que figura como decisão recorrida no âmbito do presente recurso de constitucionalidade.
3. Notificado para apresentar alegações, o recorrente concluiu, do seguinte modo:
«1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos artigos 70.º, n.[SUP]o[/SUP] 1, alínea a) e 72.º, n.[SUP]o[/SUP] 3, da LOFPTC, "do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 3 de maio de 2016, proferido nos autos em epígrafe [Proc. n.[SUP]o[/SUP] 1414/15.7T8ACB-F.C1 / Apelações em processo comum e especial] no qual se decidiu "recusar por inconstitucionalidade material, por violação do art. 20.º n[SUP]o[/SUP] 1, 4 da CRP que consagra o direito a um processo equitativo e à tutela jurisdicional efetiva, a aplicação do disposto no n[SUP]o[/SUP] 4 do art. 17º-G do CIRE, interpretado no sentido de que, requerida a insolvência do devedor pelo administrador judicial provisório, se deve aplicar, de imediato, o disposto no art. 28.º, com as necessárias adaptações, isto é, que o requerimento do administrador judicial provisório pedindo a insolvência do devedor deve implicar o reconhecimento por este da sua situação de insolvência e a dispensa da sua audiência".
2.ª) Objeto do presente recurso é a interpretação normativa, perfilhada na sentença de 1ª instância que decretou a insolvência de A., Lda., segundo a qual: "o n.[SUP]o[/SUP] 4 do art. 17.º-G do CIRE, interpretado no sentido de que, caso o administrador judicial provisório emita parecer de que o devedor se encontra em situação de insolvência, se deve aplicar, de imediato, o art. 28º do CIRE, com as necessárias adaptações, isto é, que o requerimento do administrador judicial provisório pedindo a insolvência do devedor deve implicar o reconhecimento por este da sua situação de insolvência e a dispensa da sua audiência".
3.ª) O artigo 20.º (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva), n.[SUP]o[/SUP] 4, da Constituição, na redação do artigo 8.º, n.[SUP]o[/SUP] 4, da Lei n.[SUP]o[/SUP] 1/97, de 20 de setembro (Quarta revisão constitucional), in fine, consagra o princípio do "processo equitativo", o qual, segundo jurisprudência constitucional consolidada, integra um aspeto de "(…) correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras»", enquanto garantia da defesa e do contraditório.
4.ª) A interpretação normativa perfilhada na decisão de primeira instância, na medida em que resolve decretar a insolvência do devedor, no caso a A., Lda., com fundamento exclusivo no requerimento em tal sentido do administrador provisório do processo especial de revitalização, em virtude de o ter equiparado à "apresentação à insolvência do devedor", prevista no artigo 28.º do CIRE, dispensando assim a prévia audição ou pronúncia judicial do devedor, infringe o conteúdo material do direito ao "processo equitativo", no aspeto da garantia do defesa e do contraditório, tal como consagrado no artigo 20.º, n.[SUP]o[/SUP] 4, parte final, da Constituição.
5.ª) Portanto, é de manter a decisão de recusa de aplicação dessa interpretação normativa, expressa no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 3 de maio de 2016, em virtude de a ter julgado materialmente inconstitucional, pelos aludidos fundamentos, de direito e de facto, decorrentes da violação do direito ao processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.[SUP]o[/SUP] 4, da Constituição, no que este princípio implica de direito à defesa e de direito ao contraditório, quer no plano da alegação quer no plano da prova».
4. Os recorridos B. e C. sintetizaram as suas alegações, nas seguintes conclusões:
«1.º
O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3.05.2016 ao decidir "recusar por inconstitucionalidade material, por violação do art. 20.º, n.[SUP]o[/SUP] 4 da CRP que consagra o direito a um processo equitativo e à tutela jurisdicional efetiva, a aplicação do disposto no n.[SUP]o[/SUP] 4 do art. 17.º-G do CIRE, interpretado no sentido de que, requerida a insolvência do devedor pelo administrador judicial provisório, se deve aplicar, de imediato, o disposto no art. 28.º, com as necessárias adaptações, isto é, que o requerimento do administrador judicial provisório pedindo a insolvência do devedor deve implicar o reconhecimento por este da sua situação de insolvência e a dispensa da sua audiência" nenhuma censura merece e deve por isso ser integralmente confirmado. Aliás,
2.º
O caso dos autos patenteia à saciedade a correção deste entendimento: dos factos apurados não resulta que a A. esteja impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, nem que o seu passivo seja superior ao ativo, uma vez que "a sua contabilidade foi destruída por descuido" (cit. artigo 25.º do requerimento inicial e Parecer do AJP enviado a juízo a 28.05.2014), mas antes os factos contrários:
3.º
A A. é titular de prédios urbanos avaliados pelo senhor administrador de insolvência em € 263.538,23 (cf. auto de apreensão de 22.05.2015) e os ora recorridos reclamaram créditos no montante de € 79.930,98. Assim,
4.º
Na interpretação do disposto nos artigos 28.º e 17.º-G, n.[SUP]o[/SUP] 2 do CIRE, reputada inconstitucional pela douta decisão recorrida, a declaração de insolvência fundamenta-se na mera opinião do senhor administrador de insolvência, não fundamentada em quaisquer factos conhecidos, o qual assim se substitui ao Tribunal.
5.º
É, assim, de manter a decisão acolhida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3.05.2016, que reputou de inconstitucional esta interpretação, por violação do direito ao processo equitativo consagrado no artigo 20.º, n.[SUP]o[/SUP] 4 da Constituição, apenas assim se fazendo a costumada.
JUSTIÇA».
5. A recorrida A., Lda., notificada para tal, não apresentou contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.