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	Ferramentas, 'posters' da nossa senhora da 'pop' Madonna e de outras 'santas', pequenas cobras selvagens embaladas em formol e o indispensável emblema do FC Porto compõem a humilde antecâmara de um terreno que Alberto Cathou, de 86 anos, morador no bairro da Agra desde 1959, cultiva após uma longa vida de trabalho.
"É só árvores de frutos. Tem figueiras, magnoeiros, tem romãzeiras, tenho um diospireiro enorme aos anos, mas os diospiros ficam lá para os pássaros, porque não sou capaz de ir trepar lá para cima", tal como acontece "com os magnórios", conta à Lusa na sua varanda improvisada, com uma vista de luxo sobre o rio Douro, acessível após se passar uma frágil porta de metal.
Até aqui chegar, Alberto foi ourives, trabalhou numa fábrica de louça de Mário Navega, mesmo ali ao lado, "durante 20 anos" e depois foi "para outra na rua do Heroísmo, uma tinturaria" uns "oito ou 10 anos" e, com 55 anos, foi para o desemprego, reformando-se aos 60.
"Isto é um barraco que eu fiz que pertencia a [uma casa com] um portãozinho que está ali, que tinha casas e está tudo desabitado, só tem paredes. E o senhor, como não mora aqui, deixou-me cultivar o quintal há mais de 20 anos", relata, com um olhar distante.
A sua rotina de final de vida está, hoje, ameaçada pelo projeto da linha de alta velocidade, cujo Relatório de Conformidade Ambiental do Projeto de Execução (RECAPE) do troço Porto-Oiã confirma a previsão de demolição de casas na Rua da China e Travessa da Presa da Agra, mesmo em baixo da atual linha de comboio, que será ampliada para o novo projeto.
"Só queria que fizessem esta obra daqui por 10 anos, quando eu já não estivesse cá. Eu quero mas é estar abrigado numa casa. Mais meia dúzia de anos e estava aqui até ao final. Agora lembraram-se disto, pronto...", lamentou.
Mais abaixo, na mesma rua, está António Araújo, 65 anos, a quem uma equipa da Luso-Roux lhe bateu à porta em março para pedir a matriz predial da casa onde mora há quase duas décadas.
"E depois voltaram cá há um mês e meio, em setembro. Andaram por aí a ver as casas todas por dentro e a tirar fotografias (...) mostraram-me o projeto e a linha vermelha que [delimitava] o terreno cujas construções são para demolir", especificou à Lusa.
Na sua varanda, de onde vê "desde Valongo até ao Corte Inglés de Gaia", António precisa de respirar fundo para conseguir acabar de descrever o que tem vivido nos últimos meses: "não é fácil, ninguém imagina o que isto é, ir para a cama ... [e não conseguir dormir]".
Há uns tempos, quando a empresa municipal Go Porto fez uma requalificação da sua rua e de uma parte da Travessa do Freixo, a esperança floresceu.
"Nós [vizinhos] pensávamos assim: andam a fazer obras na rua, o saneamento e a rede de água foram feitos de novo ... andam a gastar tanto dinheiro para quê? Em princípio não devemos ir à vida. Mas não ... já tivemos que pôr a cabeça de lado, porque não há hipótese", disse, resignado.
O morador na Travessa Presa de Agra falou à Lusa, depois de ter ido ao Buraquinho do Freixo, um restaurante típico da zona que, mais do que isso, é também um ponto de encontro da comunidade local e de trabalhadores, desde operários da construção civil a motoristas.
Alberto Sousa e Silva, de 70 anos, proprietário do espaço e morador da casa por cima - fazem parte do mesmo edifício no cruzamento entre a Rua da China e a Rua do Freixo - mostra-se surpreendido com o avanço do projeto da linha de alta velocidade, que, no entanto, ainda carece de aprovação da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e da Infraestruturas de Portugal (IP).
"Eu sei de quase nada. Costuma-se dizer que o chifrudo é o último a saber", diz, de rompante, à Lusa o gerente do negócio que já leva 40 anos.
Para Alberto Sousa e Silva, a abordagem por parte de técnicos contratados pelo consórcio AVAN Norte (Mota-Engil, Teixeira Duarte, Alves Ribeiro, Casais, Conduril e Gabriel Couto) "não tem sido correta", queixando-se de saber das novidades sobre a sua própria propriedade "por notícias", e "só depois é que vieram uns senhores", há cerca de dois meses.
A reação da comunidade às novidades também tem sido "má".
"Isto é gente que mora aqui há 40 e 50 anos, pessoas idosas, andam sempre aí com o coração nas mãos, perguntam a este e àquele", relata, dizendo que "a gente anda aqui e não sabe se vai para aqui, se vai para acolá, quando é ou quando não é".
Para o responsável do restaurante, "isso é errado" e "brincar com as pessoas", estando na expectativa para ver se os construtores da linha o "indemnizam o suficiente".
"Se tiver de ir, [que seja] já, para resolver a minha vida. Com esta idade, 70 anos, vou fazer o quê? Tenho uma casa, [estou] a trabalhar mais ou menos, graças a Deus, e vou para onde, agora? É complicado", conclui.
*** Ana Francisca Gomes e Jorge Sá Eusébio (texto), e José Coelho (fotos), da agência Lusa ***
				
