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ACÓRDÃO DO DIA O princípio «ne bis in idem»

santos2206

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[h=2]O princípio «ne bis in idem» pode ser restringido com o objetivo de proteger os interesses financeiros da União e os seus mercados financeiros
[/h]JusJornal, N.º 25, Secção Penal / Acórdão do Dia , Março 2018, Editora Wolters Kluwer

JusNet 54/2018


No entanto, essa restrição não deve exceder o estritamente necessário para cumprir esses objetivos. A legislação italiana em matéria de manipulação de mercado pode ser contrária ao direito da União.




Comentário aos Acórdãos TJUE de 20 março 2018, processos C-524/15, C-537/16, C-596/16, C-597/16
O princípio ne bis in idem dispõe que ninguém pode ser penalmente julgado ou punido mais do que uma vez pelo mesmo delit (1) . Este direito fundamental é reconhecido tanto pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») (2) como pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem (a seguir «CEDH») (3) . Em quatro processos italianos, foi pedido ao Tribunal de Justiça que interpretasse este princípio no âmbito da Diretiva IVA (4) e da Diretiva dos Mercados Financeiros (5) .
Processo C-524/15, Menci A Administração Tributária italiana aplicou uma sanção administrativa a Luca Menci pelo não pagamento de IVA relativamente ao ano de 2011. Foi depois instaurado um processo penal pelos mesmos factos contra L. Menci no Tribunale di Bergamo (Tribunal de Bérgamo, Itália).
Processo C-537/16, Garlsson Real Estate e o. – Em 2007, a Comissão Nacional para as Sociedades e a Bolsa italiana (Commissione Nazionale per le Società e la Borsa; a seguir «Consob») aplicou uma sanção administrativa a Stefano Ricucci por manipulação de mercado. S. Ricucci recorreu desta decisão nos tribunais italianos. No âmbito do seu recurso de cassação na Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália), alegou que já tinha sido condenado por sentença transitada em julgado em 2008, pelos mesmos factos, numa sanção penal extinta por indulto.
Com os seus pedidos de decisão prejudicial, o Tribunale di Bergamo e a Corte Suprema di Cassazione questionam o Tribunal de Justiça nomeadamente quanto à compatibilidade do cúmulo de procedimentos e de sanções com o princípio ne bis in idem.
Nos seus acórdãos hoje proferidos, o Tribunal de Justiça considera que, nas situações referidas, pode existir um cúmulo entre «procedimentos/sanções penais» e «procedimentos/sanções administrativas de natureza penal» contra a mesma pessoa pelos mesmos factos. Este cúmulo de procedimentos e de sanções constitui uma restrição ao princípio ne bis in idem.
O Tribunal de Justiça declara que estas restrições exigem uma justificação, estando esta sujeita aos requisitos resultantes do direito da União (6) . A este respeito, indica que uma legislação nacional que autorize um cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal deve:

  • visar um objetivo de interesse geral que seja suscetível de justificar esse cúmulo de procedimentos e de sanções, devendo esses procedimentos e sanções ter finalidades complementares;
  • prever regras claras e precisas que permitam ao particular prever que atos e omissões podem ser objeto desse cúmulo de procedimentos e de sanções;
  • assegurar a coordenação entre os procedimentos para limitar ao estritamente necessário o encargo complementar que este cúmulo de procedimentos representa para as pessoas em causa, e
  • assegurar que a severidade do conjunto das sanções aplicadas seja limitada ao estritamente necessário em relação à gravidade da infração em causa.
Cabe ao juiz nacional verificar se estes requisitos estão preenchidos no caso em apreço e também certificar-se de que o encargo concretamente resultante do cúmulo para a pessoa em causa não é excessivo em relação à gravidade da infração cometida. Por último, o Tribunal de Justiça considera que os requisitos aos quais o direito da União sujeita um eventual cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal asseguram um nível de proteção do princípio ne bis in idem que iguala o garantido pela CEDH. Com base nestas considerações, o Tribunal de Justiça salienta, no seu acórdão Menci, que o objetivo de garantir a cobrança da totalidade do IVA devido nos territórios dos Estados-Membros pode justificar um cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal. No que se refere à legislação nacional que permite instaurar um processo penal mesmo depois da aplicação de uma sanção administrativa de natureza penal transitada em julgado, o Tribunal de Justiça observa, sob reserva de verificação pelo juiz nacional, que esta legislação permite nomeadamente assegurar que o cúmulo de procedimentos e de sanções que autoriza não exceda o estritamente necessário para cumprir o objetivo.

No seu acórdão Garlsson Real Estate e o., o Tribunal de Justiça declara que o objetivo de salvaguardar a integridade dos mercados financeiros da União e a confiança do público nos instrumentos financeiros é suscetível de justificar um cúmulo de procedimentos e de sanções de natureza penal. Não obstante, observa, sob reserva de verificação pelo juiz nacional, que a regulamentação italiana que pune as manipulações de mercado não parece respeitar o princípio da proporcionalidade. Com efeito, esta regulamentação nacional autoriza a tramitação de um procedimento administrativo de natureza penal pelos mesmos factos que já foram objeto de condenação penal. Ora, a sanção penal parece por si ser suscetível de reprimir a infração de forma efetiva, proporcionada e dissuasiva. Nestas circunstâncias, a prossecução de um procedimento administrativo de natureza penal pelos mesmos factos que já foram objeto dessa condenação penal vai além do estritamente necessário para realizar o objetivo de proteção dos mercados. Além disso, esta regulamentação não parece garantir que o conjunto de sanções é proporcionado à gravidade da infração.
Processos apensos C-596/16 e C-597/16, Di Puma e Zecca – Em 2012, a Consob aplicou sanções administrativas a Enzo Di Puma e a Antonio Zecca por abuso de informação privilegiada. Nos recursos para a Corte Suprema di Cassazione, alegaram que, no processo penal pelos mesmos factos iniciado paralelamente ao procedimento administrativo, o juiz penal tinha declarado que não estava demonstrado o abuso de informação privilegiada. A força de caso julgado desta sentença penal de absolvição transitada em julgado proíbe, nos termos do direito processual nacional, a prossecução do procedimento administrativo pelos mesmos factos. Neste contexto, a Corte Suprema di Cassazione pergunta ao Tribunal de Justiça se, tendo em conta o princípio ne bis in idem, a Diretiva dos Mercados Financeiros se opõe a essa regulamentação nacional. Com efeito, esta diretiva impõe aos Estados-Membros a obrigação de prever sanções administrativas efetivas, proporcionadas e dissuasivas para as violações à proibição de abuso de informação privilegiada.
No seu acórdão hoje proferido, o Tribunal de Justiça declara que esta regulamentação nacional não é contrária ao direito da União, tendo em conta o princípio da força de caso julgado, que reveste uma grande importância tanto na ordem jurídica da União como nas ordens jurídicas nacionais. Além disso, quando haja uma sentença penal de absolvição transitada em julgado que declara a inexistência de infração, é incompatível com o princípio ne bis in idem prosseguir um procedimento de sanção administrativa pecuniária de natureza penal. Com efeito, nesta situação, a prossecução deste procedimento ultrapassa manifestamente o necessário para alcançar o objetivo de salvaguardar a integridade dos mercados financeiros da União e a confiança do público nos instrumentos financeiros.

(1) Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C-617/10, v. CI n.[SUP]o[/SUP] 19/13).

(2) Artigo 50.° da Carta.

(3) Protocolo n.[SUP]o[/SUP] 7 (artigo 4.°) da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

(4)
Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1).

(5) Diretiva 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro de 2003, relativa ao abuso de informação privilegiada e à manipulação de mercado (abuso de mercado) (JO 2003, L 96, p. 16).

(6) Em conformidade com o artigo 52.°, n.[SUP]o[/SUP] 1, da Carta, nos termos do qual «qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros».
 
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