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A longa viagem de Jessie

nuno29

GF Ouro
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Há muito tempo, numa aldeia pobre longe daqui, erguia-se uma casinha pequena de telhado inclinado. Estava mobilada com duas camas estreitas, duas cadeiras, e uma mesa coberta com um pano de renda fina. Um fogão bojudo aquecia a casa no Inverno e servia para aquecer uma sopa rara.

Nessa casa morava Jessie com a avó. Tinham uma vaca muito magra – Miss Minnie – e um pequeno jardim onde nasciam algumas cenouras e, às vezes, uma ou outra batata.

Os pais de Jessie tinham morrido há muito tempo, quando ela era ainda bebé. Jessie guardava o anel de casamento da mãe numa caixinha de prata forrada com uma pequenina renda e, de tempos a tempos, colocava-o no dedo.

Pela manhã, quando os rapazes da aldeia iam a casa do rabi para ter aulas, Jessie também ia. Era a avó que insistia. À noite, depois da ceia, Jessie lia em voz alta. Treinava as letras à beira do lume enquanto a avó fazia renda. A senhora guardava as moedas que ia ganhando num frasco que havia em cima da mesa.

― Agora lê tu, avó, e copia o meu alfabeto.

Jessie gostava de fazer de professora.

― Eu? Aprender a ler e a escrever? ― troçava a avó.

― Nunca se sabe. Podes vir a precisar de ler alguma coisa ― dizia Jessie. ― Podes querer escrever.

A avó ensinava Jessie a fazer renda mas Jessie picava-se muitas vezes.

― Porque é que tenho de aprender? ― gritava ela.

― Nunca se sabe. Podes precisar de trabalhar ― respondia a avó. ― Podes precisar de ganhar dinheiro.

Numa noite, lá para o fim do Verão, o rabi chamou as pessoas da aldeia à sinagoga.

― Recebi notícias tristes da América ― disse. ― O meu bom irmão Mordecai deixou este mundo.

As pessoas suspiraram e abanaram as cabeças.

― Que descanse em paz ― disseram.

― Pouco antes de morrer, Mordecai mandou-me um bilhete para ir à América.

O rabi fez uma pausa.

― Queria que fosse ter com ele.

― América! A terra prometida! – disseram as vozes em coro.

― Infelizmente ― suspirou ― sou o rabi. Como posso deixar esta aldeia? Como posso abandonar o meu povo? ― E levantou as mãos. ― Alguém da minha escolha terá de ir no meu lugar.

Nessa noite, muitos aldeões foram a casa do rabi.

― Rabi, ouve a voz da razão! Sou eu que devo ir para a América pois sou forte!

― Rabi, ouve o bom-senso! Sou eu que devo ir para a América porque sou esperto!

― Rabi, ouve a lógica! Sou eu que devo ir para a América porque sou corajoso!

O rabi ouviu-os.

“Como são vaidosos e presunçosos”, pensou.

― Esta noite pedirei orientação ao Todo-Poderoso ― disse aos aldeões. ― Vão para casa. Amanhã farei a minha escolha.

Na manhã seguinte, bem cedo, Jessie e a avó receberam uma visita.

― Já decidi ― anunciou o rabi. ― A Jessie vai para a América. A viúva do meu irmão, Kay, tem uma loja de roupa na cidade de Nova Iorque. A Jessie pode ajudar na costura e, além disso, pode levar algum consolo à boa senhora.

As mãos de Jessie começaram a tremer. “América? Tão longe da avó!” E mordeu os lábios para não começar a chorar na frente do rabi. “Não me faça ir!” pensou.

― O senhor é que sabe o que é melhor ― disse a avó calmamente. Mas sentia o coração partir-se!

“A sua querida Jessie sozinha num barco a caminho da América!” O coração dizia uma coisa mas a cabeça dizia outra. Jessie tinha de ir.

A primeira semana e as duas seguintes passaram depressa enquanto a avó preparava Jessie para a viagem. Na manhã em que o barco ia partir, chovia tanto que não se distinguia onde acabava o céu e começava o mar.

― A América! Esperam-te lá boas coisas! ― prometera a avó.

Jessie ficou na amurada a segurar o chapéu por causa do vento e da chuva. Aos pés tinha um pequeno baú com algumas roupas humildes e pedaços de renda. No bolso, levava a caixinha de prata com o forro de renda, mas a aliança de casamento da mãe não estava lá dentro.

― Guarda-a no meu lugar, avó ― segredara-lhe ao despedirem-se.

― Avó! ― gritou ela.

Mas o barco já deslizava para fora da doca, passava o canal e dirigia-se para o mar alto. No cais, os guarda-chuvas mal se distinguiam na névoa. A chuva fustigava a cara de Jessie, entrava-lhe pela gola e descia pelas costas.

Algum tempo depois, Jessie sentou-se no baú e começou a chorar. Os passageiros condoíam-se da rapariga de cabelo ruivo e sardas, mas o que podiam fazer? Amontoados e assustados, falando línguas estranhas, comprimidos uns contra os outros para se manterem quentes, o que podiam eles fazer por Jessie?

O barco navegou em direcção a Oeste durante muitos dias.

No início, o mar estava tempestuoso. Jessie ficou enrolada em cima de um tapete, demasiado doente para conseguir comer ou dormir. Pensava na avó, a comer a sopa sozinha na cabana de telhado inclinado.

Na manhã do quarto dia, o sol apareceu e os passageiros puderam secar-se. Jogavam às cartas e, por vezes, discutiam uns com os outros. Mas passavam a maior parte do tempo a falar, trocando histórias e sonhos. Sonhos da América, onde as ruas eram pavimentadas a ouro. A América, a terra da abundância!

Jessie começou a coser para passar o tempo. O simples tocar na renda delicada era como tocar de novo na avó.

Uma pequenina com olhos de amêndoa subiu para o colo de Jessie. Juntas, cantaram e fizeram jogos com os dedos. Depois Jessie coseu-lhe no vestido simples um bolso de peito em renda, e a menina dos olhos de amêndoa pôs-se a dançar de contente.

Uma senhora idosa, vestida com um casaco esfarrapado, aproximou-se. Jessie fez-lhe um colarinho e uns punhos de renda, e o casaco ficou magnífico.

Um rapaz chamado Lou – filho de um sapateiro – observava Jessie a coser a renda.

― Olá! Como estás? ― perguntou, levando a mão ao chapéu.

Jessie sorriu.

Lou tirou pedaços de couro da sua mala já estragada e coseu uns sapatos para um bebé, que chorou quando a mãe lhos calçou nos pezinhos gordos.

Desta vez, Jessie desatou a rir.

Mais tarde, Lou e Jessie passearam pelo convés a conversar. Partilharam pão de centeio escuro enquanto o barco balançava no mar alto.

Num bonito dia de Outono passaram ao largo da Estátua da Liberdade. A América! Ninguém contou histórias ou discutiu. Os bebés calaram-se. Até os passageiros mais idosos e os mais enjoados ficaram de pé na amurada. A América!

Finalmente, ali estava Nova Iorque, com os seus edifícios altíssimos, quase a tocarem o céu.

“Avó!,” pensava Jessie, “se pudesses ver o que eu estou a ver neste momento!”

O barco atracou em Ellis Island. Depois, começaram as formalidades. Esperar na fila. Controlo. Esperar na fila. Documentos. Esperar na fila. Perguntas.

― Nome? ― Jessie.

― Idade? ― 13.

― É casada? ― Não.

― Qual é a sua profissão? ― Faço renda.

― Sabe ler e escrever? ― Sim.

― Está doente? ― Não.

― Jessie!

Uma senhora de cabelo claro irrompeu por entre a multidão.

― Podes tratar-me por prima Kay.

Tinha uma voz suave e doce e deu um abraço a Jessie.

“Onde está o Lou?” pensou Jessie, enquanto a prima Kay continuava a falar. “Esqueci-me de lhe dizer adeus!”

A prima Kay vivia na Lower East Side. A casa era no terceiro andar. Havia uma banheira na cozinha e uma loja de roupas na sala da entrada.

Querida avó,

Tenho muitas saudades tuas. A prima Kay leva-me a passear na cidade. Gostava que pudesses ver as carroças, as lojas e os eléctricos que passam a toda a velocidade. Mas há gente demais na América e as ruas não são de ouro. Não há vacas. A prima Kay comprou para mim um pickle de um barril de vinagre. Amanhã começo a coser para ela.

Com todo o amor

Jessie

Jessie escolheu a cadeira amarela junto da janela, na sala. Ali a luz era boa para costurar e podia olhar para a rua. Aquilo de que Jessie mais gostava era de fazer renda: uma gola, punhos, um cinto delicado.

Todas as sextas-feiras, a prima Kay dava três moedas a Jessie, que as deitava num frasco.

Numa tarde, por brincadeira, Jessie pregou com alfinetes um corpete e umas mangas de renda num vestido branco muito simples que estava na mesa de corte.

― Que lindo vestido de noiva! ― disse a prima Kay.

Miss Emily Lenny estava na loja precisamente naquele dia.

― Bem, eu vou casar-me! Esse vestido seria perfeito para mim!

O vestido de casamento era encantador. Tão encantador que a prima de Emily, Miss Rachel Katz, quis um igual àquele para o seu casamento. Em pouco tempo, as noivas encheram a sala da prima Kay.

― Tens de ir à escola ― disse um dia a prima Kay. ― Na América, toda a gente fala inglês e a minha Jessie também vai ter de falar.

Por isso, na manhã seguinte, Jessie foi para a escola.

A – Apple. B – Boy. C – Carrot. [1]

Aquele inglês era difícil!

Querida avó,

Sinto, mais do que nunca, imensas saudades tuas.

Há aqui uma biblioteca com filas e filas de livros. Quero lê-los todos. Aos domingos dou longos passeios pela cidade e já não me perco. Há flores nos parques.

Com carinho

Jessie

Jessie ia aprendendo cada vez mais inglês. E ia pregando renda. Assim se passaram três anos. Com dezasseis anos, era agora uma senhorinha.

Num gelado domingo de Março, depois de subir a Quinta Avenida, Jessie meteu pelo parque, onde as árvores estavam cobertas de neve acabada de cair. Os trenós ziguezagueavam pelas colinas. Jessie sentou-se num banco a observar um rapaz, a quem o vento levou subitamente o chapéu. Jessie soltou uma gargalhada. O rapaz voltou-se. Lou! Jessie nem podia acreditar no que os seus olhos viam. Lou, o seu amigo do barco! Jessie acenou-lhe com a mão. E Lou, o filho do sapateiro, respondeu-lhe também com um aceno. Tê-la-ia saudado com o chapéu, se o vento lho não tivesse levado.

No domingo seguinte, encontraram-se de novo no banco do parque. E no outro domingo a seguir.

Querida avó,

Tenho um amigo especial. Faz sapatos fortes e bons com tiras de couro. Chama-se Lou. Vais gostar dele, avó. Prometo.

Adoro-te

Jessie

Uma noite, Jessie conheceu os pais de Lou, o irmão e as três irmãs. Levou-lhes um cesto de pão decorado com um pano de renda. As duas irmãs mais pequenas choraram quando ela foi embora.

― Queres casar comigo? ― perguntou Lou nas escadas em frente a casa.

― Em breve ― sorriu Jessie, pegando-lhe na mão.

Os dias e as semanas passaram. Jessie fazia e pregava renda de manhã à noite e os meses iam passando. Jessie cosia, cosia e, certo dia, o frasco ficou cheio de moedas. Levou-as então a um homem que vendia bilhetes para a América.

― Preciso de um bilhete para a minha avó ― disse.

Todos os dias, Jessie descia a correr os três lances de escadas até à caixa do correio. Finalmente, num dia ventoso, a carta chegou.

A letra era tremida, mas Jessie sabia que a avó escrevera cada palavra.

Querida Jessie,

Cosi o bilhete no forro do meu casaco.

Estou a despedir-me da aldeia.

O rabi fica a tomar conta da Miss Minnie.

A avó que te quer muito

No dia em que o barco chegou ao porto de Nova Iorque, chovia tanto que não se conseguia distinguir o céu da terra. A avó estava mais velha e muito mais frágil do que Jessie se lembrava. Abraçaram-se durante muito tempo.

― Trouxe uma coisa para ti do outro lado do mar ― segredou a avó.

E, dizendo isto, fez deslizar para a mão de Jessie a aliança de casamento da mãe.

Depois, foram as duas para casa pois ia ter lugar um casamento.
 
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